A Constituição Federal de 1988, ao abordar os Direitos Sociais, traz, em seu artigo 7º, as obrigações e garantias relativas ao trabalhador. Entre eles, a remuneração por meio do salário mínimo. De acordo com a Carta Magna, o menor valor pago pela jornada de trabalho deve atender às necessidades vitais básicas do trabalhador e de sua família, como moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social.
O salário mínimo atual está estipulado em R$ 545. Não é novidade afirmar que a quantia não é suficiente para cumprir o preceito constitucional. Prova disso é o valor da Cesta Básica Nacional (CBN) que, no mês de outubro, segundo cálculos do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), custava, em média, R$ 233,04, quase a metade do salário mínimo. Se um trabalhador gasta 50% do que ganha com alimentação, como vai investir em outras tantas necessidades?
Por conta desse questionamento, o Dieese criou uma metodologia (ver box) para definir quanto deveria ser o valor real do salário mínimo. O resultado é espantoso. Em outubro, por exemplo, um trabalhador deveria receber R$ 2.329,94 para suprir todas as suas necessidades básicas, previstas pela Constituição Federal. É um montante 4,27 vezes maior do que é, atualmente, a menor remuneração paga no Brasil, conforme a Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT).
“O salário mínimo está longe de ter o valor adequado para cumprir seu dever constitucional e de alcançar os valores reais históricos que já teve”, afirma a economista Maria de Fátima Lage Guerra, supervisora técnica do Dieese/MG. Há mais de 20 anos trabalhando no órgão, ela cita que, no passado, o salário mínimo já esteve mais perto de suprir as necessidades do trabalhador. Com o passar dos anos, os preços e o custo de vida foram aumentando, mas o valor do mínimo, ao contrário, passou a acumular perdas.
A auxiliar de serviços de educação, Filomena das Dores Silva, Filó, 59, sabe bem o que é viver de salário mínimo. Com R$ 545, remuneração paga pelo trabalho em uma escola, precisa se virar para complementar a renda e conseguir viver com dignidade. Por isso, divide seu dia entre a instituição de ensino e o salão de beleza que improvisou nos fundo de casa no bairro Gabiroba, em Itabira. “É difícil demais. Você tem que correr atrás, não parar quieta. O segredo é não acomodar naquilo que está fazendo”, diz a assalariada, do alto de sua experiência de mais de 25 anos de luta.
A rotina de Filó é intensa. Pela manhã faz os serviços de casa. Entre 12h30 e 18h30 trabalha na escola. À noite e nos fins de semana dedica-se ao salão de beleza. “Atendo em domicílio, encaixo clientes em vários horários diferentes. Tenho que dar o meu jeito. Graças a Deus, não tenho preguiça de trabalhar”, diz a auxiliar.
Filomena faz parte de uma grande massa que enfrenta a difícil missão de levar a vida recebendo um salário mínimo. De acordo com o último Censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE/ 2010), em Itabira, 18.050 domicílios, entre área urbana e rural, são mantidos com remunerações que variam de um quarto do salário mínimo a um salário. Esse número equivale a 57% das 31.711 residências do município, de acordo com o levantamento do IBGE.
Ainda de acordo com o Censo 2010, 1.525 domicílios itabiranos são mantidos com salário de até um quarto do mínimo. Entre um quarto se salário e meio salário mínimo estão 6.301 residências. Por fim, 10.223 casas são mantidas com uma remuneração que varia de meio a um salário. Essa última é a maior faixa dentro das classes de rendimento apontadas pelo IBGE em Itabira, bem à frente da segunda no ranking, formada pelas casas mantidas com um a dois salários. O instituto considera a média de 3,3 pessoas por domicílio.
PRIVAÇÃO
Como muitos brasileiros que “se viram” todo dia, a auxiliar Filomena não vive em situação de pobreza extrema e revela que sua condição financeira já foi até pior. No “corre-corre”, como gosta de dizer, conseguiu ajudar a filha caçula a terminar a faculdade, o que para muitos que vivem da mesma renda média pareceria impossível. Confiando na sua capacidade de trabalhar, Filó acredita que ainda tem muito o que progredir. “Planejo fazer reformas na minha casa, melhorar as coisas aqui dentro”, sonha.
Quem também tem como meta mudar a realidade em que vive é a auxiliar de serviços gerais Eliane Benardina de Oliveira, 33, moradora da Vila Paciência, em Itabira. “Todo mundo quer melhorar de vida. Quero muito, um dia, ter a minha própria casa”, diz. Mas ela sabe que terá que esperar. Para ter uma vida digna, além de abrir mão dos dias de folga trabalhando como diarista, Elaine precisa dividir o seu tempo entre o trabalho formal em um frigorífico e os “bicos”, como as limpezas que costuma fazer em casas e empresas.
Eliane há anos tem que dar duro para manter a casa em que mora com a filha, de oito anos, e com a mãe, que sofre de problemas renais e, periodicamente, faz hemodiálise. Na carteira, consta a quantia de R$ 545. Com alguns benefícios, como insalubridade, o salário sobe para pouco mais de R$ 600. “É lógico que o salário mínimo não é digno. A gente vive privada de muita coisa. Eu sei que o sonho de ter minha casa ainda está longe de se realizar. Eu teria que ganhar bem mais. Como realizar alguma coisa se a gente tem as despesas de casa, transporte, despesas com saúde, aluguel, e tudo isso com pouco dinheiro?”, questiona a auxiliar que, apesar das dificuldades, não perde a fé.
Para não entrar no vermelho
Ter tanta conta para pagar recebendo tão pouco é o grande desafio para quem quer levar a vida com um salário mínimo sem comprometer a renda com dívidas. Para a economista do Dieese, ficar com o nome limpo é a missão mais complicada. “É difícil passar uma receita, isso não é como fazer um bolo. Até porque é um valor bem baixo, complicado de administrar. Na verdade, a maior parte do salário é sempre destinada à alimentação. O que a gente recomenda é que a pessoa priorize os gastos essenciais.”, explica Maria de Fátima.
Filomena não é economista, mas já sabe a importância de controlar os gastos domésticos. Para ela, administrar uma casa com um salário mínimo requer uma fórmula simples, acima de qualquer teoria elaborada por especialistas. “A regra é só não gastar mais do que se ganha e não jogar dinheiro fora”, ensina a auxiliar de educação. Eliane acrescenta: “É uma vida complicada. Mas quem quer trabalhar, consegue. Eu não sirvo para ficar parada. Não espero nada cair do céu”.
O salário mínimo acima de R$ 2 mil é um sonho para todo trabalhador brasileiro. “Acho que nem seria necessário esse valor todo, mas o salário maior iria ajudar, com certeza. O problema é que se o salário sobe, também sobe o preço de tudo”, analisa Filó. “Eu poderia viver mais tranquila. Quem sabe, até realizar meus sonhos”, completa Eliane.