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A morte escancarada

A pandemia de Covid-19 veio e fez com que coletivamente encarássemos a possibilidade da morte de frente, como há décadas não ocorria. Por mais que sempre tentemos fugir dela, de uma hora para outra a morte se tornou mais palpável, mais possível. Ao menos no início da propagação do vírus, o número de mortes nos assustava. Lembro-me de quando eram 700 mortos por dia na Itália, e as pessoas ficavam impactadas com tamanha tragédia. Hoje, no Brasil, oficialmente temos 59.954 mortos e parece que não estamos mais tão sensíveis a isso, parece que nos acostumamos à situação.

Há alguns anos vivemos em uma relação com a morte que chamamos de morte escancarada. Ao mesmo tempo que ela é um assunto tabu, que não podemos falar dela, a morte aparece em nosso cotidiano a todo momento. Expulsa das casas, a morte volta pela janela, tão rápido quanto se foi. Há uma contradição: a morte é interdita, não se fala sobre ela, mas ao mesmo tempo nunca tivemos tanto contato com ela. Vemos maiores índices de mortes violentas, fácil divulgação e acesso a assassinatos, suicídios. A morte está mais frequente na mídia, existe um notável consumo da violência.

Com o início da pandemia isso aumentou ainda mais. De maneira fácil podemos ter acesso aos números, aos casos, obter mais informações sobre como anda a situação a nível municipal, nacional e mundial. Curiosamente, isso não assusta tanto mais. Isso se reflete nos comportamentos: nem todos estão cumprindo as regras de distanciamento social, não usam máscaras quando estão fora de casa. Por que isso acontece?

Estamos expostos a um excesso de informações, de imagens, de dados. Contudo, essas informações chegam ininterruptamente, e não há espaço para elaboração, para refletir sobre o que acontece. Começamos a achar que a situação é o “novo normal”, a morte se naturaliza, em minha opinião, de forma não muito saudável. Não digo para nos apegarmos a um passado que já não existe, nem para esquecer que deste momento único (e temporário). A verdade é que estamos construindo uma nova forma de viver em sociedade, mas não podemos aceitar com tanta naturalidade a morte de tantas pessoas. Um mínimo de empatia ainda deve viver.

Arthur Kelles Andrade é psicólogo, mestrando em Estudos Psicanalíticos

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