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A necropolítica é um fenômeno planetário

necropolítica

Morador de rua ao lado da Catedral da Sé, em São Paulo. Foto: Reprodução/AP

O filósofo camaronês Achille Mbembe cunhou o termo necropolítica. A palavra espanta. Causa calafrios. A ideia apavora.  Um estudo do intelectual africano demonstra que estados nacionais facilitam o extermínio de determinados segmentos sociais marginalizados. As instituições governamentais não eliminam fisicamente, somente auxiliam no processo de decomposição dos grupos humanos “indesejáveis”.

No Brasil, uma categoria de rejeitados justifica a reflexão de Mbembe: a população em situação de rua. Esses indivíduos estão naturalmente condenados à morte. A princípio, a pena capital é simbólica. Mas, no final das contas, esse simbolismo se transforma em realismo.  

A paisagem é deplorável. Os sem-tetos vivem compulsoriamente em constante degradação física e moral. E a própria população é fundamental para a naturalização dessa tragédia. A maioria dos cidadãos é um instrumento de relativização da escandalosa exclusão. O povo dissemina os piores qualificativos para pessoas em situação de rua: vagabundos, vadios, ladrões, pilantras, sujos e drogados. Essa é a equivocada avaliação do senso comum. A opinião popular independe de opção religiosa ou condição sociocultural. A repulsa generalizada é espontânea e vem do âmago. Tudo muito natural.  

Os maltrapilhos das grandes cidades perambulam a esmo pelas vias públicas ou estabelecem improvisadas moradias debaixo de viadutos, imundos por natureza. Muitos fazem uso de fétidas águas de esgoto na higienização. Alguns compartilham restos de alimentos com empesteados animais de estimação. As sobras são nauseabundas. Malcheirosas.  

E aqui está a comprovação prática da tese do pensador da República de Camarões. O estado não assassina os seres “desprezíveis”. Apenas facilita o aniquilamento deles. Mas como isso acontece? Pela simples omissão. Esses sujeitos (moradores em condição de rua) vivem à margem da estrutura legal. Não têm direito a assistência médica ou psicológica, por exemplo. Os “representantes do povo” não incrementam políticas públicas em benefício dessa “gentalha”. Afinal, esse pessoal nem título de eleitor tem. E – em meio ao abandono institucional – a morte dos indigentes passa despercebida. Esses “marginais” são exemplo típico de vítimas da necropolítica. 

A necropolítica, porém, embute uma constatação didática: a democracia não deveria ser apenas uma ferramenta de defesa dos interesses da maioria. E, nesse momento, entra em campo o antídoto para o mal diagnosticado por Achille Mbembe: o reconhecimento do multiculturalismo – as várias nuances da sociedade contemporânea, o mundo das minorias. A anulação do estranhamento diante do diferente é tarefa elementar das democracias modernas.  

Essa prerrogativa significa o acesso de negros, mulheres, população em condição de rua, comunidade LGTBQi +, e indígenas, por exemplo, ao nirvana das classes privilegiadas. Então, no multiculturalismo, a democracia é a ferramenta de garantia dos direitos fundamentais das minorias. Mesmo porque, as benesses estatais deveriam ser distribuídas de forma qualitativamente homogênea e universal. A necropolítica, às vezes, mata mais que ocasionais pandemias.

PS: A necropolítica é um fenômeno presente em todos os países do planeta, desde as grandes potências até os bananais da periferia.

Fernando Silva é jornalista e escreve sobre política em DeFato Online.

O conteúdo expresso é de total responsabilidade do colunista e não representa a opinião da DeFato.

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