Tudo caminha muito rápido na Argentina. No domingo (19), Javier Gerardo Milei venceu a eleição presidencial. Lá, o voto é impresso. O pleito terminou às 18h.O resultado extraoficial foi divulgado — com precisão — por volta das 20h. Minutos depois, Sergio Massa admitiu a derrota. O candidato vitorioso assumirá no dia 10 de dezembro. Mais uma agilidade de “los hermanos”. Essa rapidez impede um perigoso vácuo político/administrativo. No Brasil, o processo é bem mais lento. Da data da votação até o dia da posse, prevalece extenso hiato de três meses. Esse longo espaço de tempo facilita a fomentação de conspirações e “otras pequeñas cosas”.
Os conceitos ideológicos também não são idênticos nos dois países. Na terra do Papa Francisco, a definição de esquerda e direita se estabelece em outros parâmetros. Naquelas bandas, o peronismo é principal referência no campo filosófico. O antagonismo socialismo/liberalismo fica em segundo plano. “La bolotaje” (disputa eleitoral) foi histórica. O futuro do país, porém, permanece no “modo incerto”. O trem segue fora dos trilhos. A atual crise socioeconômica é a mais cruel das últimas quatro décadas e as consequências são dramáticas. Os argentinos até já se especializaram na arte de sobreviver em meio ao caos financeiro.
Mas, quem é o tal Javier Milei? Esse neófito entrou na política há apenas cinco anos e teve meteórica carreira. Elegeu-se deputado — pela primeira vez — em 2021. E entrará com pompa e circunstância na cobiçada “Casa Rosada”. Um fenômeno. A vida de Milei, porém, é sinônimo de inusitado. O exotismo começa no relacionamento com os seus cachorros de estimação. Uma postura muito digna, diga-se de passagem. O sujeito já passou fome para não deixar os animais sem alimentos. Javier formou-se em Economia pela Universidade de Belgrano (um bairro nobre de Buenos Aires). Os nomes dos seus quatro cães são homenagens a grandes economistas liberais norte-americanos: Murray (Rothbard), Milton (Friedman), Robert e Lucas (Robert Lucas).
Esses “filhos” de quatro patas nasceram da clonagem de DNA do falecido Conan — o primeiro pet do líder argentino. Observe essa teoria fantástica do novo presidente. Ele e Conan se conheceram em Roma há dois mil anos, durante uma reencarnação qualquer. Milei era gladiador. Já o bicho vivia na pele de um leão. Os dois se enfrentaram numa arena, mas ninguém devorou ninguém. Não ouse duvidar desse conto do gringo desbocado.
E qual é a projeção para o governo recém-eleito? O fechamento do Banco Central (BC) é o carro-chefe do festival de “inovações”. A polêmica, porém, parece simples recalque. Quando se formou em economia, o futuro chefe do Executivo cumpriu um período de estágio no BC. E apresentou um bom desempenho. Tanto que seria contratado em definitivo. Mas deu zebra. E o motivo é prosaico. “Teve um psicotécnico no meio do caminho, no meio do caminho teve um psicotécnico”.
O novo mandarim portenho tem temperamento explosivo. É excêntrico. Os discípulos de Freud talvez consigam explicar a origem de tão complexa personalidade. O futuro presidente vivenciou uma infância difícil e foi vítima de violência doméstica. Era espancado constantemente pelo pai. E mais. Sofria bullying em salas de aula. E, para piorar, a mãe o ignorava solenemente. Então, a irmã Karina Milei se transformou na muleta emocional do menino. A mana do peito sempre foi amiga, confidente e conselheira.
Javier também já se aventurou na música. Na década de 1990, foi líder de uma banda cover dos Rolling Stones. Antes, o jovem tentou a carreira futebolística. Não deu certo. Ele se revelou fraco goleiro do futebol amador da periferia de Buenos Aires, uma espécie de frangueiro. Não se preocupe. A Argentina terá primeira-dama. A comediante e namorada Fátima Florez representará esse papel. Curiosamente, ela alcançou o estrelato imitando Cristina Kirchner — a atual vice-presidente da combalida Argentina. Anote aí. Karina Milei terá forte influência no governo. A “mãe adotiva” será uma versão milongueira de Andrea Neves ou Raquell Guimarães.
Agora, falando sério. O futuro inquilino da “Quinta de Olivos” herdou um autêntico “engenho de fogo morto. O “salvador da pátria” passará por muito estresse para emplacar o seu misterioso plano de governo. As propostas terão que passar pelo crivo de um Legislativo com sangue nos olhos. Situação complicada. Afinal, não há Centrão no parlamento argentino. O famoso “toma lá dá cá” não faz parte da política da nação de Lionel Messi. Conclusão fatal. O “anarcocapitalista” necessitará muito jogo de cintura para administrar a infraestrutura estatal. Veja só o tamanho da encrenca. Dos 72 senadores, 34 são peronistas e apenas 8 jogam no time do ultraliberal. A Câmara é formada por 257 deputados. Desses, 108 são naturalmente oposicionistas. Somente 37 apoiam o novo presidente. Resumo da ópera. Milei terá muita dificuldade para concluir o mandato. A não ser que mude substancialmente o discurso. A sua postura em relação ao apoiador chave será fundamental para se evitar o precoce naufrágio do Titanic. O ex-presidente Mauricio Macri será o principal avalista da nova aventura ultraliberal no Cone Sul.
P.S.1: No discurso da vitória, Javier Milei pediu prazo de 18 a 24 meses para domar a fera inflacionária (138,3% ao ano). Ele sabe o que fala. Afinal, a economia é a sua praia.
P.S.2: Javier Milei e Jair Bolsonaro têm pelo menos um ponto em comum: ambos detestam jornalistas. É uma contradição. O argentino ganhou notoriedade participando de programas de rádio e televisão.
P.S.3: O ponto final do discurso da vitória foi emocionante. O presidente eleito se superou e disparou: “Viva la libertad, carajo!!! Dios bendiga a los argentinos”. Nunca Milei foi tão Milei. Já está na história.
Fernando Silva é jornalista e escreve sobre política em DeFato Online.
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