Relatórios e documentos apresentados à Justiça comprovam que o processo de reparação pela tragédia de Mariana conduzido pela Vale, BHP Billiton e a Samarco — e executado pela Fundação Renova — desrespeitou o princípio da igualdade material. Dessa forma, uma ação civil pública (ACP) requer, entre outros pedidos, o pagamento, por essas empresas, de uma indenização mínima de R$ 135.552 para cada mulher atingida e de pelo menos R$ 36 mil pelos danos morais sofridos. Além de R$ 3,6 bilhões pelos danos morais coletivos gerados.
A ação foi ajuizada na última sexta-feira (21) pelo Ministério Público de Minas Gerais (MPMG), Ministério Público Federal (MPF), Ministério Público do Espírito Santo (MPES), Defensoria Pública de Minas Gerais (DPMG), Defensoria Pública do Espírito Santo (DPES) e Defensoria Pública da União (DPU). Ela correrá na 4ª Vara Federal de Belo Horizonte.
De acordo com o MPMG, “o objetivo é obter o reconhecimento da responsabilidade das requeridas [Vale, BHP Billiton e Samarco] pelos danos ocasionados às mulheres atingidas pelo procedimento para reparação de danos decorrentes do rompimento da barragem de Fundão, em 5 de novembro de 2015”.
Baseada em uma perspectiva de combate à violência de gênero, a ação demonstra, por meio de relatórios e documentos, que as mulheres foram invisibilizadas e, portanto, prejudicadas por uma série de violações de direitos empreendidos pelas empresas e executado pela Fundação Renova, durante o cadastramento e o processo de reparação de danos.
Entre os pedidos apresentados à Justiça, está o pagamento, pelas empresas e pela fundação, de forma solidária, de indenização mínima de R$ 135.552,00 para cada mulher atingida, pelos danos materiais causados pela violação sistemática aos direitos humanos, e de, pelo menos, R$36 mil pelos danos morais sofridos. Foi requerido também o pagamento de indenização de, pelo menos, R$ 3,6 bilhões pelos danos morais coletivos gerados.
A ação segue a linha do Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero formulado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), cujas diretrizes se tornaram obrigatórias desde 14 de março de 2023.
Um relatório sobre a situação das mulheres atingidas pelo desastre do rio Doce no Espírito Santo, elaborado pela Defensoria Pública e juntado à ação, denuncia a falta de integração entre as iniciativas de reparação e a rede de políticas públicas de atendimento à mulher, a inexistência de mesas de diálogo composta integralmente por mulheres e a exclusão da matriz de danos de atividades laborativas típicas de mulheres.
Além disso, dados fornecidos pela Fundação Renova demonstram que, mesmo tendo um cadastro integrado, realizado por ela mesma, com quantitativo semelhante entre homens e mulheres, há reduzida participação da mulher já na oitiva para levantamento de dados primários. “Apenas 39% das pessoas entrevistadas eram do gênero feminino e apenas 34% de mulheres foram elencadas como responsáveis economicamente pela casa”, cita a ação civil pública.
As instituições que assinam a ação destacam a importância do cadastro, lembrando que ele representa a porta de entrada da Fundação Renova para os outros 41 programas de reparação ambiental e socioeconômica. “Assim, a ausência de participação das mulheres na coleta de dados na base da reparação trouxe efeitos danosos de caráter excludente e invisibilizador da realidade das mulheres antes e depois do desastre”, observam.
Família patriarcal
A utilização, pela Fundação Renova, do conceito de família patriarcal como única espécie de família foi apontada como a base da violação de direitos. Conforme a ação, isso gerou, para as mulheres, entre outros problemas, dificuldade de acesso aos seus dados pessoais inseridos na plataforma gerida pela fundação e também para requerer a correção dos incorretos, condicionando o ato à autorização de seus maridos. “Ao assim proceder, a Fundação Renova e as mantenedoras revisitam o arcaico Código Civil de 1916, considerando, na prática, as mulheres incapazes de exercerem os atos da vida civil sem a supervisão do homem”, assinala a ação.
O aumento da sobrecarga doméstica, ligado a conflitos familiares e à saúde mental dos atingidos, também é mencionado na ACP, a partir de um relatório elaborado pela Fundação Getúlio Vargas (FGV) com dados da Ouvidoria da Fundação Renova. Parte dos relatos foi considerada muito graves e retrata, inclusive, tentativas ou intenções de suicídio. “Para se ter uma ideia, dos 154 casos com relatos sobre questões de saúde mental, 71,4% também informam problemas de sobrecarga doméstica, muitos deles, inclusive, associando o desenvolvimento de determinada doença mental — a depressão, na maioria dos casos — às dificuldades associadas aos cuidados e afazeres domésticos”, aponta o documento.
A ACP afirma que o processo de reparação do desastre do rio Doce vem, até agora, não apenas reproduzindo violências de gênero, mas também reforçando-as e aprofundando-as no território. Reivindica, em razão disso, que o Poder Judiciário corrija o caminho tomado até o momento.
“Os erros cometidos durante o processo de compensação e reparação ao longo desses quase 9 anos, dentre os quais se destaca a carência de ações afirmativas com recortes de gênero, devem ser reconhecidos, revertidos e combatidos, para que o curso mude de rumo e haja redução efetiva dos danos coletivos e sociais, que são ainda maiores dentro de grupos já vulnerabilizados por questões históricas e culturais”, diz a ação civil pública.
A necessidade de se ter um olhar atento às interseccionalidades, especialmente em relação às mulheres negras, indígenas e de comunidades tradicionais, como as quilombolas, também é destacada na ação.
Pedido liminar
As instituições que assinam a ACP pedem que as empresas e a Fundação Renova promovam, emergencialmente, a atualização, revisão e correção do cadastro de todas as mulheres cadastradas ou com solicitações de cadastro pendentes, a partir de requerimentos individualizados já apresentados e a serem apresentados pelas mulheres atingidas.
O objetivo é possibilitar a inclusão ou retificação de toda informação que seja necessária para fundamentar a sua elegibilidade e permitir o seu acesso direto ao Auxílio Financeiro Emergencial (AFE), ao Programa de Indenização Mediada (PIM) e ao Sistema Indenizatório Simplificado (Novel).
Entre os pedidos de caráter liminar, estão ainda: que as requeridas apresentem em juízo todas as manifestações formalizadas na Ouvidoria da Fundação Renova e promovam a atualização, revisão e correção do cadastro de todas as mulheres atingidas; que permitam a todas as mulheres cadastradas na Fase 01, prioritariamente, o acesso imediato ao AFE, PIM e NOVEL, de modo que a sanear as informações pendentes para o correto enquadramento na categoria pleiteada pela mulher; que realizem o pagamento integral, inclusive retroativo e atualizado, de todas as verbas devidas e não recebidas pelas mulheres atingidas; entre outros.
O que dizem as empresas
Na segunda-feira (24), a mineradora Vale emitiu uma nota sobre eventual ação judicial movida pelos Ministérios Públicos Federal e dos Estados de Minas Gerais e Espírito Santo contra ela, BHP Billiton e sua joint-venture Samarco Mineração, com pedido de indenização de 3,6 bilhões de reais por danos morais coletivos. Segundo a empresa, ela ainda não foi notificada sobre a ACP.
“A Companhia informa que não foi notificada pelo poder judiciário a respeitode tal ação e que irá apresentar seus argumentos ao juízo competente em momento oportuno. A Vale reitera que o processo de reparação de danos decorrentes da barragem de Fundão, em 2015, é conduzido pela Fundação Renova em linha com os compromissos firmados pelas Companhias junto às autoridades brasileiras. Com Samarco, BHP, instituições de justiça e representantes do poder público, a Companhia segue comprometida com as negociações por um acordo de caráter definitivo, que garanta reparação justa e integral às pessoas afetadas e ao meio ambiente”, diz a nota da Vale.
A BHP Billiton também disse que ainda não foi comunicada sobre o processo. Já a Samarco ainda não se posicionou sobre o caso.