À medida que o Taleban avança pelo Afeganistão, organismos multilaterais, ONGs e representantes da sociedade civil exortaram a comunidade internacional a trabalhar para garantir a proteção da população do país do Oriente Médio. O secretário-geral da ONU, António Guterres, afirmou estar esperançoso de que as negociações de paz ocorridas em Doha, no Catar, restaurem o caminho para a resolução do conflito e assegurou que a instituição está pronta para ajudar os afegãos. De acordo com a ONU, 18,4 milhões de pessoas precisam de assistência por conta das disputas, que podem forçar 390 mil cidadãos a deixarem suas casas apenas este ano.
A ONG Human Rights Watch pediu que governos estrangeiros abram as fronteiros para refugiados afegãos que correm risco de serem perseguidos pelo Taleban. “Seja de dentro ou de fora do Afeganistão, os governos e escritórios da ONU devem fornecer proteção e assistência aos afegãos em risco e fazer do processamento de documentos de viagem e transporte uma prioridade”, destacou a diretora da organização para Ásia, Patricia Gossman.
A representante da ONG chamou atenção para o histórico do Taleban na opressão de pessoas que consideram inimigos. Segundo a instituição, jornalistas, acadêmicos e ativistas estão entre os possíveis alvos do grupo fundamentalista, bem como integrantes de minorias étnicas. Por isso, a ONG defende a suspensão de deportações de afegãos.
“As partes beligerantes do Afeganistão precisam reconhecer que o mundo está observando e as evidências de abuso estão sendo coletadas”, disse Gossman. “Aqueles que cometem atrocidades podem um dia esperar enfrentar a justiça por seus crimes perante o Tribunal Penal Internacional ou outro tribunal”, acrescentou.
O Comitê Internacional de Resgate (IRC, na sigla em inglês), por sua vez, destacou que o recente recrudescimento dos conflitos coloca civis em perigo, particularmente mulheres. A entidade iniciou um programa com objetivo de arrecadar US$ 10 milhões em ajuda ao Afeganistão.
“A administração do presidente americano, Joe Biden deve usar sua força diplomática para pedir um cessar-fogo nacional imediato para deter a violência crescente e facilitar a entrega de ajuda e serviços humanitários urgentemente necessários”, instou a Diretora Sênior do IRC para Política e Advocacia de Programas Internacionais, Amanda Catanzano.
Em uma carta aberta à chanceler da Alemanha, Angela Merkel, um grupo de veículos de imprensa do país europeu pediu para que o governo emita vistos emergenciais para funcionários afegãos. “Os empregados que desejam deixar o país enfrentam perseguições, prisão, tortura e morte. Pedimos, portanto, que aja rapidamente”, exortaram os veículos.
Países retiram diplomatas
Com a tomada da capital afegã Cabul pelo grupo fundamentalista islâmico Taleban, governos de vários países-membros da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) com operações no Afeganistão estão retirando representantes e diplomatas do país. Entre eles, além de Estados Unidos, estão Alemanha, Reino Unido, Canadá e Espanha.
O primeiro ministro do Reino Unido, Boris Johnson, convocou uma reunião do comitê de emergência de seu gabinete para este domingo (15). Além disso, parlamentares britânicos estão sendo convocados de suas férias de verão para discutir o agravamento da situação no Afeganistão. De acordo com autoridades, o Parlamento deve debater, na quarta-feira, uma resposta do governo à crise.
O jornal britânico Sunday Telegraph informou que o embaixador do Reino Unido no Afeganistão, Laurie Bristow, deve deixar o país na segunda-feira à noite, mas o Ministério de Relações Exteriores não confirmou a informação. Na semana passada, o Ministério da Defesa britânico havia dito que estava enviando 600 soldados ao país para ajudar a retirar cidadãos britânicos e afegãos que trabalharam com as forças britânicas no país.
Um oficial dos Estados Unidos informou que diplomatas estão sendo levados da embaixada dos EUA em Cabul para o aeroporto da cidade. Um pequeno grupo permanecerá no local o tempo que for possível, conforme as condições de segurança.
A Alemanha enviou aviões militares para retirar funcionários de sua embaixada na segunda-feira. Segundo a agência de notícias alemã DPA, a missão incluirá os funcionários afegãos que trabalhavam para a embaixada alemã. As aeronaves devem transportar o grupo de Cabul para uma base na Ásia Central, de onde aviões fretados os levarão para Frank Jordans, em Berlim.
O Corriere della Sera, da Itália, reportou que a maior parte do pessoal da embaixada italiana em Cabul está sendo transferida para o aeroporto da capital, em preparação para a evacuação. A operação envolve cerca de 50 funcionários italianos e 30 funcionários afegãos e suas famílias, juntamente com a polícia paramilitar Carabinieri, que protege a embaixada, segundo o veículo. A agência italiana LaPresse disse que um voo com funcionários partiria de Cabul no domingo à noite.
Diplomatas dos Estados Unidos também estavam sendo levados para o aeroporto de Cabul, onde poucos representantes permaneceriam por algum tempo, conforme as condições de segurança locais. O secretário de Estado, Antony Blinken, o secretário de Defesa, Lloyd Austin, e o general do Exército Mark Milley, presidente da Junta de Chefes de Estado-Maior, teriam uma conferência virtual com membros da Câmara na manhã deste domingo para tratar da situação no Afeganistão, a pedido da presidente da Câmara, Nancy Pelosi.
O Ministério de Defesa da Espanha também publicou comunicado dizendo que ainda não tinha iniciado a retirada de equipes e cidadãos espanhóis do país, mas que os planos de evacuação estavam sendo finalizados.
Antes de o presidente Ashraf Ghani deixar o país, a Otan havia informado que continuava “ajudando a manter operações no aeroporto de Cabul para que o país permanecesse conectado com o mundo”. A organização não detalhou quantos funcionários ainda estavam no Afeganistão, mas disse que está “avaliando constantemente os desenvolvimentos” no país.
Já o enviado da Rússia ao país, Zamir Kabulov, disse que não há planos de retirar funcionários da embaixada russa. Segundo ele, o embaixador russo e sua equipe estão “calmamente cumprindo suas obrigações”. Conforme a agência de notícias russa, o Taleban prometeu garantir a segurança da embaixada russa em Cabul.
Conselho de Segurança da ONU fará reunião na segunda
O Conselho de Segurança (CS) da ONU realizará uma reunião de emergência nesta segunda-feira, dia 16, por volta das 11h (pelo horário de Brasília), a pedido da Estônia e da Noruega. Diplomatas do conselho disseram, neste domingo, 15, que o secretário-geral da ONU, Antonio Guterres, informará os membros do colegiado sobre a situação do Afeganistão, após o Taleban chegar à capital Cabul.
O chefe da ONU pediu ao Taleban que parasse imediatamente sua ofensiva no Afeganistão e negociasse “de boa fé” para evitar uma guerra civil prolongada. Ele também disse que está “profundamente perturbado” com as primeiras indicações de que o Taleban está impondo severas restrições nas áreas sob seu controle, especialmente visando mulheres e jornalistas.
Saída dos EUA do Afeganistão aumenta poder de Rússia e China na Ásia Central
A retirada dos Estados Unidos do Afeganistão e o avanço fulminante do Taleban para controlar o país abriram o caminho para uma disputa entre China e Rússia por influência na Ásia Central. Enquanto Pequim aposta no seu peso econômico, Moscou usa a cooperação militar com as ex-repúblicas soviéticas para projetar seu poder na região.
Especialistas indicam duas razões principais para a entrada de chineses e russos no cenário geopolítico afegão. A primeira é o vácuo de poder deixado pelos americanos. Moscou viu nele uma oportunidade de projetar mais influência na Ásia Central, já que o Afeganistão é cercado por ex-repúblicas soviéticas, como Tajiquistão, Usbequistão e Turcomenistão.
Por ser um ponto de passagem entre Oriente Médio, sul da Ásia e Ásia Central, o Afeganistão é também um ativo estratégico para a China e sua Nova Rota da Seda, a rede de estradas, pontes, ferrovias e portos patrocinada pelo governo chinês em vários países na Ásia, Oriente Médio e África.
Além disso, o ressurgimento do Taleban preocupa chineses e russos, que têm um histórico de repressão a minorias islâmicas em seu próprio território. Mesmo as antigas repúblicas soviéticas estão na gênese de muitos movimentos radicais islâmicos que influenciaram o Taleban e a Al-Qaeda, como o MIU (Movimento Islâmico do Usbequistão).
“A crise no Afeganistão preocupa muito os países da Ásia Central, que há muito tempo têm problemas com militantes islâmicos que várias vezes foram treinados pelo Taleban”, explica Vanda Felbab-Brown, pesquisadora do Brookings Institution. “A Rússia conseguiu do Taleban o compromisso de impedir esses militantes de agirem na região e tem influência em termos financeiros e políticos entre líderes políticos e tribais no Afeganistão para assegurar seus interesses.”
Na semana passada, soldados russos fizeram exercícios conjuntos com militares de Tajiquistão e Usbequistão e anunciaram programas de parceria com as duas ex-repúblicas. Moscou tem se aproximado do Taleban desde 2018, na expectativa de o grupo impedir a infiltração de jihadistas em áreas de minoria islâmica na Rússia.
“O Kremlin age para garantir a segurança de seus aliados na Ásia Central”, lembrou ao Financial Times o cientista político russo Arkadi Dubnov, especialista na região. “É uma questão de imagem. Putin tem de convencer seus aliados que só ele pode garantir sua segurança.”
A China, por sua vez, tem interesses econômicos e estratégicos no Afeganistão, e ambos foram facilitados pela saída de cena dos americanos. Dois projetos de infraestrutura da Nova Rota da Seda passam pelo Afeganistão: uma estrada que ligará Cabul a Peshawar, no Paquistão, e outra rodovia que conectará a Província de Xinjiang, de maioria muçulmana, ao Afeganistão e ao Paquistão.
“Quando essas obras forem concluídas, Pequim poderá alcançar sua meta de aumentar o comércio e a extração de recursos naturais no Afeganistão”, afirma Derek Grossman, da consultoria Rand. “Estima-se que o país tenha reservas imensas de metais raros, cruciais para a indústria de ponta chinesa.”
Os interesses chineses e russos na Ásia Central, no entanto, não coincidem e podem provocar rivalidades no futuro. “A Rússia tem cumprido um papel de oferecer segurança a esses países e os define como área de influência”, acrescenta Vanda Felbab-Brown. “Já a China tem feito ofensivas diplomáticas e econômicas na região, o que Moscou vê como contrário a seus interesses”.