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Crimes durante saidinhas são fruto de sistema que pune mas não responsabiliza, explica Diogo Luna

Foto: Guilherme Guerra/DeFato

O tema “saidinha”, como são popularmente chamadas as saídas temporárias previstas no Código Penal Brasileiro, foi amplamente debatido no Brasil entre o fim do ano passado e o início de 2024. Especialmente após a morte do policial militar Roger Dias da Cunha, assassinado à queima-roupa por Welbert de Souza Fagundes, que usufruía do benefício naquele momento.

À procura da opinião de um especialista sobre o assunto, a DeFato conversou com o professor Diogo Luna. Autor de diversos livros sobre segurança pública e outros temas, o mineiro de Bocaiúva se aproveitou da sua experiência como pesquisador e agente da segurança pública, além da passagem pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG), para analisar o polêmico assunto.

Ao portal, Diogo Luna é enfático em dizer que o problema é resultado de um sistema baseado na punição ao invés da responsabilização. Mas antes, ele deixa claro que há duas formas distintas de se analisar a questão.

“Existem dois contextos que precisamos avaliar quando falamos da saída temporária. O primeiro contexto é normativo, porque estamos falando de um direito do preso, de toda uma estrutura do processo de ressocialização. E o outro contexto é político, econômico, social, cultural, que, de um modo ou de outro, interfere na operacionalização do contexto normativo. Então, todas as vezes que falamos, a meu sentir, de restrição de direitos, independentemente de quem seja, de qual seja o titular, de qual seja a prerrogativa atribuída a esse titular, precisamos analisar com muita cautela, porque direitos são conquistados a partir de um processo evolutivo, em um contexto que pode, evidentemente, ser mudado conforme a visão do próprio poder legislativo, na análise da própria comunidade política”, inicia.

“E quando eu digo análise da comunidade política, eu estou pensando em toda essa estrutura social, institucional, dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário. E aí a restrição de direito traz riscos; precisa ser vista com cautela. Por outro lado, existe um contexto que caminha ao lado deste normativo, que é econômico, político, social e cultural, que precisamos refletir criticamente. E por que eu estou dizendo isso? Porque todas as vezes que falamos do sistema punitivista que nós assumimos no Brasil como opção, essa punição não significa responsabilização. E isso tem um dano”.

Neste contexto, diz Diogo, o infrator não enxerga a detenção como um efeito dos seus atos, mas sim como uma mera punição. “Então, quando colocamos alguém condenado dentro de um sistema prisional, e este sistema não é capaz de responsabilizar, nós não podemos exigir muito dessas pessoas punidas. Porque muitas vezes o sujeito não dá conta da própria punição. Punir por punir, sem responsabilizar, faz com que o sujeito veja aquilo que está sendo a ele imposto como sendo um martírio e não um processo responsabilizador, de interiorização. Poxa, é isso, é essa compreensão que eu preciso ter das consequências da minha conduta, das consequências daquilo que nós, enquanto comunidade, esperamos de pessoas que possam ter um agir de forma correta, adequada, séria e responsável”, completa.

Exemplo local

Para traduzir sua análise, Diogo Luna citou o projeto “Itabira por Eles”, cujo alvo são homens que praticaram violência doméstica. De forma quantitativa, a ação, fruto de um trabalho de mestrado orientado pelo professor, provou como a reincidência no crime foi muito menor com quem participou integralmente do projeto.

“Percebemos que grande parte desses homens que estão ali inseridos não dão conta do que é a violência contra a mulher. Ou seja, eles começam a ser responsabilizados quando entendem o cenário da violência, e depois que eles se dão conta daquilo que é a violência, eles começam a perceber porque eles estão ali, porque que estão sofrendo essa reprimenda. E aí essa pesquisa de mestrado deu conta de demonstrar, quantitativamente, que o número de homens que participaram de todos esses círculos reflexivos e voltaram a reincidir é muito menor do que aqueles que não participaram”, relembra Diogo, que acrescenta: “aqueles sujeitos que não participaram de todos os círculos voltaram a reincidir… esses homens voltavam a praticar atos de violência, porém com outras mulheres”.

Correndo em círculos

Admitindo os graves problemas envolvendo a saidinha, Diogo Luna reforça que o atual sistema de segurança pública brasileiro não é capaz de abandonar seu cunho punitivista. Por isso, diz ele, vivemos correndo sem sair do lugar.

“Marcos Rolim escreveu um livro chamado ‘A Síndrome da Rainha Vermelha’. E o livro tem esse nome justamente para mostrar como a segurança pública padece dessa síndrome. No livro ‘Alice no País das Maravilhas’, há um determinado momento que a Rainha Vermelha vira para a Alice e diz assim: ‘corre, Alice, corre!’. E as duas começam a correr, e aí a rainha pede para correr mais rápido. Até que, a determinada altura, a Alice dá conta que elas estão correndo, correndo, correndo e continuam no mesmo lugar. Aí ela para, vira para a Rainha e fala assim: ‘espera aí! A gente está aqui correndo há tanto tempo e parece que a gente não saiu do mesmo lugar’. A Rainha diz: ‘é isso! Por quê?’, aí a Alice diz: ‘na minha terra, quando a gente corre, a gente vai de um lugar para o outro’. Aí a rainha diz: ‘poxa, que terra mais pachorrenta!’. Ou seja, quando ele deu o título desse livro, ele ia mostrar isso. Como que a segurança pública se move a todo momento, instantaneamente, rapidamente, sem sair do lugar”, analisa.

E como sair deste lugar? Para o professor, é necessário pensar a segurança pública como uma junção de diversos âmbitos, entre eles a educação e a assistência social.

“Hoje não temos como pensar a segurança pública como sendo um nicho fechado em sistemas policiais. Eu estou dizendo de educação; não tem como falar em segurança pública sem falar em educação. Não tem como falar em segurança pública sem pensar na saúde. Não tem como falar da segurança pública sem assistência social. Porque são todos esses atores, constituindo aquilo que eu gosto de dizer, que é uma segurança pública construída em rede, é que dão conta de apresentar respostas que sejam factíveis a problemas sociais reais do mundo”, detalha.

“Todas as ações de segurança pública, na minha perspectiva, precisam ser maturadas e pensadas a longo prazo. Ações imediatistas em segurança pública são sempre temerárias. Então, quando a gente pensa no fortalecimento de uma rede de educação, quando pensamos na necessidade de jovens, crianças e adolescentes estarem efetivamente na escola, os reflexos virão para a segurança pública. Na escola que seja inclusiva, que dê conta das particularidades, da diversidade… a segurança pública tá aí. Vai dar resposta amanhã? Não vai e é um processo, até de fortalecimento de vínculos comunitários. Todos os estudiosos da criminologia sempre dizem isso e continuam a dizer o quão eficaz é aquilo que se chama na criminologia de controle social informal do crime. Ele é muito mais efetivo que o controle social formal”.

Especificamente sobre o caso do sargento Roger, Diogo Luna relembra as críticas sofridas pela juíza que concedeu a saidinha ao responsável pelo homicídio. Sem entrar no mérito da escolha, o professor enfatiza que o problema vai muito além dela.

“A OAB, inclusive, fez uma nota muito elogiosa à postura da juíza, de aplicação da norma ao caso. Havia argumentos. Agora, estava certo ou não estava? Isso aí tem que deixar para análise da correção da decisão judicial, o que é feito pela própria estrutura do Poder Judiciário. Mas eu nem entraria aí, acho que o problema antecede”.

O sargento da Polícia Militar de Minas Gerais, Roger Dias. Foto: Reprodução/Instagram/Deputado Federal Pedro Aihara

Mudanças necessárias

Há dez dias, o colunista da DeFato Online, Fernando Silva, publicou um texto no qual defende a reforma do Código Penal Brasileiro. Um dos argumentos utilizados, inclusive, foram os crimes ocorridos durante as saídas temporárias no final de 2023.

Ao concordar com Fernando Silva, Diogo Luna relembra que o atual texto do código é oriundo do período Vargas. Para ele, um fato simbólico.

“Não só do Código Penal, como do Código de Processo Penal. E aqui por uma questão muito pontual. Temos duas estruturas normativas, que são o Código Penal e o Código de Processo Penal, que foram originariamente pensadas na vigência da Constituição Polaca de Vargas, do Estado Novo de 1937. Então não precisa dizer mais nada. Nós vivemos um processo de redemocratização pós-88, e essas normas continuam regendo a sociedade, como se nada tivesse sido alterado de lá pra cá. Claro, tivemos várias reformas pontuais, institutos, mas isso ainda continua lá. Então, quando falamos dessa reforma, e eu concordo, é uma reforma que seja capaz de reestruturar, ressignificar e recontextualizar”, finaliza.

O que é a saidinha?

A saída temporária, popular saidinha, é um direito da pessoa presa de sair do presídio e ir para a casa de seus familiares por sete dias. Em um ano, acontecem cinco delas, cada uma com sete dias cada.

Por motivos de política criminal, ou seja, organização do Estado, as datas da saída são predefinidas. Essas datas predeterminadas costumam cair em feriados ou datas comemorativas, como o Dia das Mães. Durante o período, a pessoa pode viver normalmente, desde que respeite as regras impostas pelo juiz.

Sobre o entrevistado

Diogo Luna Moureira é Doutor e Mestre em Direito, Delegado de Polícia e professor do Mestrado Profissional em Segurança Pública e Cidadania da Faculdade de Políticas Públicas da UEMG. Além disso, Diogo Luna também dá aulas no curso de pós-graduação em Criminologia da Academia de Polícia Civil do Estado de Minas Gerais.

Autor e co-autor de inúmeros livros, publicou obras de variados assuntos, como eutanásia, saúde mental e a própria segurança pública. Clique aqui para conferir todos os detalhes sobre a carreira do entrevistado.

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