Em busca de uma explicação metafísica para o coronavírus

O jornalista Fernando Silva dialoga sobre a representação divina e o egocentrismo do homem ao longo da história, e comenta as transformações humanas impostas pelo novo coronavírus.

Em busca de uma explicação metafísica para o coronavírus
Crédito: Matthaeus Merian (1593-1650)/Wikimedia
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A Covid-19 é portadora de um duro recado para os moradores desse planeta: “Vocês – que são arrogantes e insignificantes – agora estão num barco à deriva. Saiam dessa, se são capazes”.

Mas, afinal, o que se passa com a humanidade? Difícil responder. Uma hipótese parece clara: o homem (e a mulher) está tendo um encontro marcado com a sua natural arrogância e notória inexpressividade. A arrogância foi demarcada na linha do tempo da história. O “homo sapiens” imagina-se dono do universo. Não se contenta com a sua suposta hegemonia nessa minúscula esfera azul (praticamente um asteroide).

Uma alegoria religiosa ilustra esse imenso egocentrismo: “o homem foi criado à imagem e semelhança de Deus”, ensinam os cristãos. Como assim, cara pálida? Essa afirmação, no mínimo, justifica o ateísmo. É claro. A fotocópia humana só comprovaria notável imperfeição da “divindade suprema”. O criador de todas as coisas, então, é mesquinho, falso, mentiroso, dissimulado, fofoqueiro, violento e mercenário.

O deus das igrejas é a mais sacana invenção mundana. Nada tem de sobrenatural. É matéria pura. Ele tem utilidades bem definidas: serve para arrecadar dinheiro, oprimir idiotas* e mistificar o comovente drama da finitude. Afinal, um dia, todo o mundo vai definitivamente para o beleléu. E há vida depois da vida? As religiões oferecem um atraente paliativo (ou ópio da alma) para a morte: a vida eterna num paraíso repleto de virgens. Eu não trocaria essa fascinante fantasia pelo inferno em que vivo.

A espécie humana é de imensurável insignificância. Os renomados “sábios” das ciências naturais se perdem diante do infinitamente grande. Jamais decifraram a origem do universo. Pesquisam muito e sempre inventam insustentáveis teorias. Algumas revelações da ciência foram verdades “vinicianas”, pois se mantiveram eternas enquanto duraram (desculpe-me o sofisma). Paradigmas normalmente nascem com prazo de validade.

As suposições sobre a origem do cosmo não passam de chutes ocasionais. O “tudo” começou com o Big Bang? É isso? Logo, apresentem-me o fotógrafo e o jornalista que registraram a formidável explosão.

E, pior. Quando a matéria se torna ilimitadamente pequena – praticamente invisível – a vaca da sabedoria vai para o brejo de vez. E aqui está um exemplo prático desesperador: o novo coronavírus deu xeque- mate na “elite pensante” global. Provocadora ironia: o vírus é o elemento mais primitivo da natureza. O mega-assassino nem vida própria tem. É parasita de uma célula qualquer. A Covid-19, portanto, virou a mais incômoda definição de “coisa”. Uma “coisa” mortal.

E deus existe? Sim. Ele há em todas as partes. O deus do homem é o Dinheiro. O sistema monetário é uma entidade onipresente. As moedas são idolatradas com paixão. Por elas, ama-se e mata-se. Vende-se e se vende. A sociedade planetária respira o “vil metal”.

E eis aqui um consolo: existe uma Força Superior. Ela fica no local em que tudo se origina. Provavelmente, nos limites do universo. Mas onde é isso? Ninguém sabe. Santa ignorância. A humanidade é muito atrasada, atrasadíssima. Estamos na escala mínima da evolução. Ainda não dispomos de conhecimentos científicos, filosóficos ou morais para definir a natureza dessa Força. Um dia a gente chega lá. Daqui a milhares de anos, talvez pouco mais. Ou nunca.

Mas, não tenham dúvidas. A Covid -19 veio pra botar ordem no barraco, apesar da zona toda. A lição do imperceptível é clara: a solidariedade alimenta a alma e o amor sacia a fome de ser e pertencer. E, mais: a natureza (arché) é a nossa própria natureza. Um panorama pinta com relativa nitidez no horizonte: o mundo nunca mais será o mesmo depois do catastrófico desfile dessa máquina de produzir cadáveres (a Covid-19).

A Terra – nesse instante – passa por radical faxina moral, ética e espiritual. Algumas inutilidades (e possíveis utilidades também) serão eliminadas. Os atuais conceitos de poder, sociedade, ciência e espiritualidade estão ruindo como castelos de areia. Dignidade e igualdade (a rima diz tudo) prevalecerão, depois de tudo.

Um “evento”, complexo e desconhecido, dará as cartas no final das contas – chame isso de palpite ou pressentimento. A trágica realidade não acontece por acaso. O imponderável cósmico botou o time em campo. E esse jogo não terminará nos acréscimos. Pode apostar.

*Os antigos gregos – principalmente de Atenas – reuniam-se em praça pública (Ágora) para debater assuntos de interesse da pólis. Não era obrigatória a presença dos cidadãos (pessoas do sexo masculino, livres e com mais de 18 anos). Mas, aqueles que não participavam dessas assembleias eram chamados “idiotas” (idiotes).

Fernando Silva é jornalista e escreve sobre política em DeFato Online.

O conteúdo expresso é de total responsabilidade do colunista e não representa a opinião da DeFato.

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