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Estamos no Brasil, mas nem por isso a picaretagem pode ser presumida

Estamos no Brasil, mas picaretagem não pode ser presumida!

Recentemente, diretores do Whatsapp se reuniram com Luís Roberto Barroso, então presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Nesse encontro, firmaram um acordo que, no meu ponto de vista, é um tanto peculiar. A iniciativa, que teve como pano de fundo o combate à divulgação de notícias falsas, exige a incorporação de atualizações no sistema do aplicativo de mensagens   para desestimular a disseminação de informações, limitando conteúdos que são encaminhados com frequência.

Além disso, o CEO do aplicativo, Will Cathcart, prometeu não implementar nenhuma mudança significativa, antes do fim do período eleitoral. O assunto voltou à tona no final da semana passada (27/04), quando a empresa anunciou que, só após o pleito de outubro, será lançado no país o recurso “pequenas comunidades”, que possibilitará o aumento   do número de usuários em um único grupo, atingindo milhares de pessoas no mesmo espaço.

Lógico que a medida incomodou à classe política que, depois das últimas eleições presidenciais, tem utilizado as plataformas digitais em suas campanhas e, na busca pelo voto. O WhatsApp virou uma das principais ferramentas de marketing. Estranhamente, essa decisão da empresa é exclusiva para o Brasil. Em outros países, o usuário é livre para mandar mensagens para quem quiser e para quantas pessoas desejar, exercendo a sua liberdade de expressão. Realmente, notícia ruim corre rápida e notícia falsa ainda mais.

O que não acontece com a mesma rapidez, no Brasil, é a consciência, já que diariamente recebemos uma chuva de notícias falsas. É inegável que o nosso país é uma terra fértil para a divulgação de fake news. Assistimos isso ao longo dos últimos anos, quando a pandemia da Covid-19 revelou a quantidade de mentiras, que poderiam ser contadas. Cientistas australianos conseguiram mapear o impacto das notícias falsas em 52 países e o Brasil ocupa o terceiro lugar nesse ranking, entre os mais afetados por notícias inverídicas sobre vacinas e a própria doença.

Um grande levantamento a respeito da proliferação de fake news na internet foi realizado por cientistas do Instituto de Tecnologia de Massachusetts, nos Estados Unidos. Essa pesquisa comprovou que uma notícia mentirosa ligada à política tem a capacidade de se alastrar três vezes mais do que uma verdadeira. Ok, somos um país de muitos mentirosos! Se eu não reconhecesse tal fato, entraria neste índice macabro, o qual crítico e condeno.

Pois é, eu disse que o acordo entre o TSE e o Whatsapp é peculiar, mesmo reconhecendo que, em nosso país, a mentira corre solta. O que me chama a atenção são as questões jurídicas envolvidas nessa manobra. Mas antes, um recado claro, para não abrir brechas para falsas interpretações: sou a favor, sim, de medidas que combatam a disseminação de mentiras. O que questiono é a maneira como isso tem sido feito.

Quando o TSE resolve barrar o WhatsApp, porque foi isso que ocorreu, está dizendo, em alto e bom tom, que a picaretagem no Brasil é presumível. Não existe a possibilidade de se tapar a boca de um cidadão, apenas supondo que ele contará uma mentira. Temos, em nosso ordenamento, leis que combatem as “fake News” e preveem punições para os criminosos. O que falta, como sempre, são ações concretas para a aplicação dessas leis.

A regra, não só jurídica como moral, é clara: ninguém pode ser punido somente por suposição de que irá cometer um crime ou contravenção. Sem contar que tal medida- um pé atolado no freio- atrasa o avanço da tecnologia e, convenhamos, compromete diretamente a liberdade de iniciativa privada. A todo momento, as plataformas digitais procuram inovar, crescer, melhorar e propiciar mais recursos técnicos para o usuário.

Porque, então, impedir esses avanços? O Código Penal já tipifica e pune a calúnia, difamação e injuria, bem como as leis eleitorais, que também já condenam àqueles que disseminam notícias e informações sem fundamento. Será que precisamos de uma medida inédita no mundo? Porque, aqui, o livre envio de mensagens só poderá ocorrer após as eleições? O que está por trás de uma ação como essa, levando-se em consideração que as eleições mostraram uma grande adesão ao uso dessas tecnologias?

Com quase 120 milhões de contas, o Brasil é o segundo país em número de usuários do WhatsApp, atrás apenas da Índia. Esse dado estatístico deixa claro a posição do ministro Luís Roberto Barroso sobre a utilização das tecnologias de comunicação e informação pelo povo brasileiro. Nesses tempos de intensas opiniões, a Constituição Federal, que foi uma conquista de muitos, está no topo da hierarquia normativa, mas, lamentavelmente, é subordinada à interpretação de poucos.

Gustavo Milânio é advogado.

O conteúdo expresso neste espaço é de total responsabilidade do colunista e não representa necessariamente a opinião da DeFato.

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