O entardecer na Praça Tiradentes de Ouro Preto, na década de 1970, era momento único. Havia muita magia, misticismo, mas, principalmente, intensa vagabundagem. Todos os desocupados da antiga Vila Rica compareciam ao local. Até parecia uma assembleia previamente convocada. O bando era formado por hippies, estudantes, malucos, prostitutas, bêbados, intelectuais e artistas de todos os naipes. Alguns turistas convertidos também se misturavam a essa fauna eclética.
O local sempre foi um território sem lei, uma anarquia conceitual. Não havia ordem. Tudo poderia acontecer naquela “praça da liberdade”. Ali, o inusitado andava de braços dados com o imponderável. Os poucos policiais que se aventuravam pela área tinham a mesma serventia da estátua de Tiradentes. Apenas compunham a paisagem. Não interferiam em nada. Os degraus do monumento do herói da Inconfidência se assemelhavam a um poleiro, pois ficavam repletos de “aves raras” de todos os matizes e tendências intelectuais, sexuais, ideológicas e sociais. Esse espaço liberal era um prato feito para sociólogos, psicólogos, antropólogos e outros estudiosos da alma humana. O tagarelar dessa turba – normalmente repicado por palavrões – ecoava por todos os lados.
Era tarde de inverno. Um sol fraco e amarelado iluminava o telhado do casario colonial. A temperatura despencava rapidamente. Uma turma papeava descontraidamente numa das extremidades da praça. Zizinho Sabonete, Bené Linguiça e Professor Pardal jogavam conversa fora com alguns estudantes da tradicional “Escola de Minas” (atual UFOP).
De repente, pinta no pedaço um ônibus com colegiais de Belo Horizonte. Um cicerone começou a contar causos da cidade histórica para os escolares da capital mineira.
Um deles se desgarrou da turma. Bastante ressabiado, o jovem se aproximou dos ouro-pretanos. Olhou para Zizinho Sabonete e, meio sem graça, fez a mais marota pergunta do dia:
– Moço, o senhor tem um baseado pra me arrumar?
Sabonete ignorou a pergunta, e continuou recitando as suas abobrinhas. O garoto não se deu por vencido. Chegou mais perto e repetiu, num tom um pouco mais alto:
– Moço, o senhor me arruma um baseado?
Quase não se contendo, Sabonete berrou:
– Não encha o saco, menino. Vai caçar a sua turma!
E o moleque, cada vez mais inconveniente, insistia:
– Eu quero um baseado, moço.
– Vai se foder! Apelou o já irritado Zizinho.
E o estudante:
-Moço, por favor, me arruma um baseado.
Prestes a se explodir – vermelho e trêmulo – Sabonete capitulou:
– Tá bom, seu merda. Vou arrumar esse maldito baseado para você desaparecer da minha vida. Espera aí um pouco.
Afastou-se do pessoal, e entrou sorrateiramente no beco do Hotel Pilão. Cerca de 20 minutos depois, para a surpresa de todos, retornou com um cigarro de papel de jornal. Aproximou-se do garoto, acendeu o estranho pito e recomendou:
– Fuma isso rápido e dê o fora, senão os “homis” pegam a gente.
O fedelho tragou demoradamente o “bagulho”. Olhou para o céu. Ficou calado por alguns instantes. Depois, esbugalhou os olhos e saiu aos gritos pela praça. Correu com os braços para cima, como se comemorasse alguma conquista esportiva. Chegou junto a seus colegas, arriou as calças e mostrou um branquelo e flácido traseiro. A cena provocou espanto e gargalhadas.
Pardal se indignou com Zizinho:
– Que palhaçada! Você teve coragem de dar maconha para um adolescente? Você não tem vergonha na cara?
Morrendo de rir, Sabonete explicou o improvisado teatro:
– Vocês acham que eu sou doido? Aquilo não era maconha. Era um cigarro de folha seca de chuchu. O moleque provou, e provou que nasceu para ser o bobo da corte.
PS1: Sabonete foi um destacado ator do grupo “Palco & Rua”, que fazia performances nas ruas de Ouro Preto, na década de 1970. O talentoso artesão Professor Pardal morreu há mais de dez anos. Bené Linguiça – muito espirituoso comerciante – atualmente vive em outra cidade da região central de Minas Gerais.
PS 2: Nessa quarta-feira, feriado de 21 de abril, acontecerá uma cena bastante emblemática de Minas Gerais: o prefeito Ângelo Oswaldo – totalmente desacompanhado – depositará uma coroa de flores na base da estátua do mártir da Independência do Brasil. A inimaginável imagem da Praça Tiradentes, completamente deserta, é um grande símbolo desses tempos de pandemia.
Fernando Silva é jornalista e escreve sobre política em DeFato Online.
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