Primeiro ano da década de 1980. A paisagem urbana e social de Itabira era muito diferente. O município tinha uma dependência bem maior do extrativismo do minério de ferro. A agressiva poluição atmosférica, muito mais intensa, causava sérios problemas respiratórios. Uma densa nuvem de poeira pairava sobre os quatro cantos da cidade, durante 24 horas.
A mineradora Cia Vale do Rio Doce (CVRD) era uma entidade onipresente no cotidiano da população. Os trabalhadores da antiga estatal desfilavam — dia e noite — pelas ruas, praças e avenidas. Esses atores invadiam bares, igrejas, bancos, cinemas, transporte coletivo e lojas. Os personagens jamais largavam os seus tradicionais uniformes de trabalho. O conjunto da obra era formado por grossas camisas e calças de brim, ambas amarelas. Pesadas botinas de couro e capacetes de todas as cores completavam o figurino. A indumentária da chefia apresentava uma tonalidade diferente. Engenheiros e supervisores usavam camisas marrons e capacetes brancos. Essas cores segregavam e faziam a diferença. Chefe é chefe, o resto é resto. A CVRD e Itabira se confundiam. Ninguém conseguia determinar precisamente onde terminavam as minas e iniciava a cidade, ou vice-versa.
A área urbana mais parecia imenso acampamento a céu aberto, provavelmente o maior do planeta. Uma realidade digna de ocupar a página central do “Guinness World Records”. O segmento da Educação funcionava de modo incipiente. O único curso superior — uma extensão da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC/ Minas) — oferecia duas graduações em licenciatura: Matemática e Letras. A terra do Poeta Maior ainda não contava com emissoras de rádio, um perturbador atraso. A infraestrutura mostrava graves deficiências. A prefeitura funcionava precariamente na atual Secretaria de Obras. O novo prédio do Executivo só foi construído no antigo campo de futebol do São Cristóvão FC, em 1984. As ruas São José e Juca Machado, por exemplo, denotavam um monumento ao desleixo. Os calçamentos de ambas eram de chão batido, com forte coloração vermelha. A futura avenida das Rosas não passava de imenso precipício.
A avenida João Pinheiro era a principal referência da região central. Um riacho (verdadeiro esgoto a céu aberto) dividia a via ao meio. Em épocas de chuvas, recorrentes inundações traziam transtornos para comerciantes e usuários da rodoviária. E pior. Um insuportável mau cheiro infectava ainda mais a já densa atmosfera. Os debochados itabiranos tachavam a João Pinheiro de “avenida dos urubus”, por motivos óbvios.
Ao lado da Avenida Carlos Drummond de Andrade — atrás da Fundação Itabirana Difusora do Ensino (FIDE) — havia vasto matagal, em um terreno bastante íngreme e irregular. Nessa área, um pequeno e rudimentar atalho foi muito utilizado por funcionários do Hospital Carlos Chagas. O caminho improvisado era a maneira mais rápida para se chegar ao local de trabalho. Ali, hoje em dia, está localizada a Alameda Maestro José Dorotéia Reis. Esse é o ponto exato onde aconteceu o mais violento e misterioso crime da crônica policial de Itabira.
A imagem do brutal assassinato da menina “Lia”
Quarta-feira, 26 de março de 1980. Por volta das cinco horas da manhã, alguns funcionários do Hospital Carlos Chagas (HCC) entraram no improvisado atalho, ao lado da avenida Carlos Drummond de Andrade. Os profissionais da saúde subiriam o terreno íngreme e irregular até alcançar o prédio do HCC. Esse percurso durava cerca de 10 minutos. O dia amanheceu ensolarado e quente. O céu avermelhado era prenúncio de alta temperatura. Naquele momento, uma multidão de operários da CVRD também já perambulava pelas principais ruas da cidade. Eles tomariam os ônibus da Cisne e iniciariam o turno das 6 horas, nas mais diversas áreas da estatal.
A turma do Carlos Chagas conversava animadamente. Mas, logo, notaram algo estranho, no alto do morro. Um objeto — pouco perceptível — pendia de uma cerca de arame farpado, bem à direita. A estranha silhueta mais parecia um pedaço de pano, ou trapo velho. Porém, com o passar do tempo, a imagem tomou um contorno assustador. A poucos metros, o cenário ficou mais nítido. Súbito, um grito de horror ecoou na mata. Imediatamente, algumas pessoas retornaram à avenida. Desceram o morro em desabalada carreira. Outras, atônitas, seguiram rapidamente para o hospital.
Essas pessoas acabaram de presenciar a mais macabra das cenas. Uma menina — completamente despida e ensanguentada — estava presa à cerca de arame farpado, por meio de vasta cabeleira loira. O rosto encontrava-se desfigurado. Um filete de sague escorria lentamente pelo canto da boca. Os dentes frontais estavam quebrados. Dois grandes pedaços de madeira foram introduzidos nos órgãos genitais da vítima. No chão, ao lado do corpo, havia uma pequena marreta coberta de sangue. A ferramenta foi utilizada para golpear várias vezes a cabeça e o rosto da mulher. A vegetação — atrás da cerca — encontrava-se bastante amassada, um indício de luta corporal. Essa circunstância indica que a garota reagiu à agressão. Lutou intensamente pela sua sobrevivência, até o último instante.
Em poucas horas, a notícia da tragédia alcançou os quatro cantos de Itabira. Um pouco mais tarde, o cadáver foi identificado. Tratava-se da adolescente Maria do Perpétuo Socorro Rodrigues, popular “Lia”, uma moradora do bairro Praia. A moça contava apenas 15 anos de idade. Na tarde daquela quarta-feira, uma multidão — em clima de revolta e comoção — acompanhou o sepultamento de Lia, no Cemitério da Paz.
A cronologia de um crime “aparentemente perfeito”
Lia morava com a mãe e uma irmã, no bairro Praia. Os pais dela eram divorciados. A jovem estudava pela manhã. Na parte da tarde, no período entre 14h e 18h, trabalhava como babá, numa casa de família, na rua Água Santa, no início da Rua Esmeralda. A garota cuidava de uma criança de três anos de idade.
Um tio de Maria do Perpétuo Socorro tem memória viva do dia da tragédia. Coincidentemente, esse senhor também vivenciou outro drama, na data fatídica. Terça-feira, 25 de março de 1980. Luiz Carlos Salvador Rodrigues participou das horas derradeiras de sua sobrinha. E ela, por sua vez, também testemunhou a angústia do tio. Salvador detalha os acontecimentos:
“Minha mulher estava grávida e deu à luz um menino. Meu filho teve poucas horas de vida. No momento do parto, ele ingeriu acidentalmente o líquido amniótico e foi para a incubadora. A criança sobreviveu apenas algumas horas. Durante toda a parte da manhã, Lia permaneceu no hospital e deu apoio integral à tia dela”, relembra. O sepultamento do corpo do menino foi às 17 horas, no Cemitério da Paz.
Lia saiu momentaneamente do serviço para prestar assistência à família. Em torno das 17h30, retornou ao local de trabalho para encerrar a sua atividade diária. Voltaria para a sua casa por volta das 18 horas. “Depois do sepultamento do meu filho, peguei um carro e deixei Lia na rua Salvino Pascoal Patrocínio, nas proximidades do antigo Braguinha. De lá, ela foi para a rua Água Santa, e eu retornei para a minha residência”, conta Luiz Salvador. O homem estava muito cansado. O dia foi intenso e emocionalmente desgastante.
Por volta das 21 horas, a mãe de Maria chegou à casa de Salvador. Estava tensa. Muito preocupada. A sua filha ainda não havia chegado. Os dois irmãos, então, se dirigiram à casa da patroa. Lá, receberam a seguinte informação: “a babá deixou o local às 18 horas”, como sempre fazia. A partir daquele momento, começou uma dramática maratona, que durou praticamente a noite toda. A adolescente foi procurada em residências de parentes, amigos, colegas de escola e nas principais ruas da cidade. Ninguém informou o seu paradeiro. A família entrou em pânico. A pior notícia, no entanto, chegou na manhã do dia seguinte: o corpo da moça foi encontrado, nas proximidades do Hospital Carlos Chagas. Maria do Perpétuo Socorro foi estuprada e assassinada com requintes de crueldade.
Quem matou Maria do Perpétuo Socorro Rodrigues?
O assassinato de Maria do Perpétuo Socorro Rodrigues completou 42 anos, no mês de março. O criminoso (ou criminosos) não se preocupou em descaracterizar a cena do crime. Pelo contrário, deixou várias pistas no local. A marreta — utilizada para golpear a cabeça da vítima — estava repleta de digitais. Nenhum suspeito foi preso.
Na época da tragédia, uma infinidade de suposições foi difundida na sociedade itabirana. A conversa mais corriqueira era a narrativa de um crime passional. A proprietária de uma boate da zona boêmia foi a suposta mandante do homicídio. A boataria indicava o dedo numa direção: “um amante da cafetina se apaixonou por Lia. A dona do prostíbulo descobriu a traição e decidiu eliminar a rival”. Outra corrente sinalizava para a participação de um “misterioso policial” na cena do crime. As duas hipóteses, porém, nunca foram comprovadas.
O tio Luiz Salvador afirma que Lia jamais apareceu em casa com namorados. “Eu acho pouco provável que essas duas hipóteses sejam verdadeiras, mas o assassino da minha sobrinha jamais foi encontrado. Essa é a realidade”, lamenta Salvador, que completa o seu raciocínio: “foram milhões de perguntas e milhões de respostas falsas”, resume.
O assassinato da estudante e babá — Maria do Perpétuo Socorro Rodrigues — se transformou num dos maiores mistérios da história de Itabira. Quatro anos depois do crime, o famoso ex-delegado Antônio João Reis assumiu a Delegacia de Polícia do município. O popular “Xerife” decidiu reabrir o caso. Não adiantou nada. As investigações morreram de morte natural.