Até o final dos anos 1980, a antiga Cia Vale do Rio Doce (CVRD) era uma empresa extremamente paternalista. Valia a pena trabalhar na Vale. E isso desde sempre. Esse jeito de ser estava no DNA da antiga estatal. Em determinada época, a situação beirou o exagero. Os trabalhadores ganhavam moradia, tinham assistência médica, compravam em armazéns com preços subsidiados e até contavam com um hospital exclusivo (o Carlos Chagas). A mineradora pagava 15 salários por ano. Além do décimo terceiro, existiam duas gratificações intermediárias: uma no mês de julho e outra em dezembro. Havia inúmeros outros benefícios. E mais: a empresa raramente demitia um funcionário. A não ser em casos de extrema- extrema gravidade. E todo o mundo queria trabalhar na Vale.
Na segunda metade da década de 1980, tudo mudou. Os novos tempos se principiaram com a chegada de Saulo Queiroz Braga a Itabira — um técnico de mineração, de apenas 22 anos. Alto, elegante, de cabelos negros e ligeiramente longos. Era atleta. Fazia a festa das mulheres de então. Apesar de muito jovem, era faixa preta de caratê. De imediato, começou a ensinar a arte marcial em diversas academias da cidade. Ficou muito popular e se envolveu completamente com a sociedade itabirana.
Gostava de política. Tinha forte carisma e oratória contagiante. O sujeito exibia um pensamento nitidamente de esquerda. De uma hora para outra, o irrequieto moço se interessou por sindicalismo. Passou a pesquisar sobre o “perigoso” tema. O questionamento ao modelo sindical vigente foi uma atitude pra lá de previsível. A velha CVRD e o antigo Metabase seguiam idêntica filosofia de gestão. A diretoria da entidade sindical, então, entrou na alça de mira do técnico “agitador”. Essa nova postura incomodou muito a direção da mineradora.
Queiroz esticou as cordas e, em determinado instante, “passou das medidas”. Numa assembleia de trabalhadores- no poliesportivo do Valeriodoce totalmente lotado- fez duras críticas ao presidente da estatal: o histórico e poderosíssimo Eliezer Batista. Consequência da ousadia: Saulo foi sumariamente executado (ou demitido). Não adiantou muito. O ex- empregado continuou azucrinando a vida da Cia. Mesmo do lado de fora, iniciou a formação de uma chapa oposicionista para concorrer às próximas eleições do Metabase.
Num dia, em 1987, Saulo viajaria ao Rio de Janeiro para importante reunião com novas lideranças sindicais do Brasil. Para esse deslocamento, utilizou seu próprio veículo: um muito bem conservado fusca esverdeado. No, meio do percurso, numa curva acentuada, cruzou com um caminhão repleto de bobinas de aço. Essas peças- que se encontravam muito mal posicionadas- se desprenderam e despencaram sobre o Volkswagen. Saulo teve morte instantânea. Completaria 26 anos de idade, no ano seguinte. A comoção tomou conta da classe trabalhadora. O evento dramático acirrou ainda mais a oposição sindical. Os dirigentes da CVRD ficaram desnorteados com a tragédia. Afinal, indiretamente, eles tinham um quê de culpa.
Mas quem substituiria a forte liderança de Saulo Queiroz? Um técnico em eletricidade, lotado na mina de Conceição, topou encarar a parada: Milton José Martins Bueno, popular Bita. Bueno também era dono de um discurso duro e envolvente. Não tinhas papas na língua. Era cirúrgico nas críticas. E não deu outra. Um ano depois da morte de Saulo Queiroz, o novo sindicalismo derrubou o velho sindicalismo.
O recém-eleito presidente do Metabase, fiel aos preceitos de Saulo, trabalhando em sintonia com uma diretoria bastante coesa, iniciou uma série de transformações no movimento sindical. O ápice das mudanças foi traumático. Em abril de 1989, eclodiu a primeira grande greve da história da exploradora de minério. Algo inimaginável, na ocasião. Muitos observadores da cena garantem que a mega paralisação desencadeou o processo de privatização da chamada “joia da coroa”. Não se sabe se essa foi exatamente a causa básica do misterioso leilão. Mas, uma coisa ninguém discute. Depois da greve histórica, a CVRD e o Sindicato Matabase nunca mais foram os mesmos.
Milton Bueno permaneceu na direção da entidade por nove anos. No mês de fevereiro, no dia 15, o demolidor de um consistente paradigma (o ponto final do peleguismo no Metabase) morreu precocemente aos 68 anos. Foi vítima de um acidente doméstico.
PS: há dois anos, André Viana — atual presidente do Metabase — prestou comovente homenagem a Milton Bueno, durante uma solenidade, na Praça do Areão. O reconhecimento é a mais sublime energia do espírito.