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”Não suportaram quando começaram a ir pessoas da comunidade LGBT”, diz Roberta Estrela D’Alva sobre o fim do programa Manos e Minas

Foto: Nereu Jr/Divulgação PULSA

Dias atrás, a atriz, pesquisadora, slammer e apresentadora, Roberta Estrela D’Alva esteve em Itabira para participar do !PULSA! Movimento Arte Insurgente. Em entrevista exclusiva à DeFato, a artista contou sobre sua carreira e abordou temas sensíveis, como a conjuntura social do País e o encerramento do programa “Manos e Minas”, da TV Cultura, no qual foi apresentadora por longos anos. Em sua visão, ela afirmou que o fim do programa teve um propósito político claro ‘‘de encerrar um diálogo’’ e fazer um apagamento social. 

Focado na cultura urbana, periférica e negra e suas diversas representações, o programa “Manos e Minas” teve suas gravações encerradas em 2019. Roberta explica que houveram dois momentos distintos em relação ao fim do programa: o primeiro era estritamente pessoal, onde ela sentia que estava no ‘‘automático’’ e queria dar sucessão para uma nova apresentadora: ‘‘Sei lá, uma mina mais nova, negra retinta, uma pessoa trans, vários apresentadores.. Não sei’’. Porém, como ela mesma afirma, isso jamais poderia ocasionar o fim do projeto, existente desde 1993. 

O derradeiro fim veio após uma mudança na Fundação Padre Anchieta, mantenedora da TV Cultura, que pertence ao Governo de São Paulo: ‘‘Eles começaram a falar não, essa TV não tem que ser educativa, porque ela não se sustenta, ela tem que ser uma TV lucrativa’’.

Foto: Nadja Kouch/Divulgação

‘‘Sabe o que eu acho? No fundo, eram fortes os poemas, muitos criticavam o governo, teve um que até criticou diretamente o Geraldo Alckmin [então governador de São Paulo]. Mas eu acho que eles não suportaram, por incrível que pareça, quando começaram a ir pessoas da comunidade LGBT. Foi demais para a cabeça deles’’.

Segundo Roberta, o fim premeditado foi uma intenção política do governo. Segundo ela, até chegou a ouvir nos bastidores que um dos membros da gestão que havia ingressado disse: ‘‘Ela é muito boa apresentadora, mas esse slam…’’. As gravações do programa aconteciam todas as segundas e quartas-feiras, onde cerca de 300 pessoas — em grande maioria periféricos — ocupavam um teatro de forma gratuita, com acesso a shows e demais atividades. ‘‘Tinha um serviço para além do do que ia pra televisão, do produto, tinha um serviço cultural. Então, eu acho que eles quiseram calar vozes’’, avalia.

‘‘Onde você nasce é o lugar que determina muita coisa’’

Diadema e São Bernardo, na Grande São Paulo, em meados dos anos 80. Em um bairro metalúrgico, na época de grandes greves sindicais, nascia e crescia Roberta Marques do Nascimento. Hiper-expressiva, começou muito cedo a fazer aulas de balé, ‘‘uma coisa muito europeia’’ para uma menina filha de pai negro. ‘‘Você ter que se comportar de um jeito já é uma atuação. Eu já achava muito engraçado, mas dava vazão para alguma coisa que ia vir depois, que era ser atriz’’, relembra. O teatro mesmo veio aos 13 anos, dentro da escola, onde surgiu a alcunha de ‘‘Estrela D’Alva’’, quase que em um batismo feito por uma amiga.

Avançando para os anos 90, na efervescência do hip-hop que ouvia em programas das rádios Manchete e Metropolitana, além das coletâneas da época, veio o contato com a música de denúncia, que mostrava um verdadeiro ‘‘Raio-X do Brasil’’: ‘‘Meu Deus, o que que é isso? O que esses caras tão falando?’’. Na faculdade de Artes Cênicas, em seu último espetáculo, Roberta deveria encenar um policial e foi até as delegacias para estudar. Lá, ela não analisava os homens de farda, mas aqueles que estavam sendo “barbarizados”. 

Estrela D’Alva queria mostrar a causa do ódio e o rap caiu como uma luva para ela conseguir expressar o que sentia, via e pensava. Anos depois, veio o convite para fazer parte do Núcleo Bartolomeu de Depoimentos, uma companhia que utiliza os elementos da cultura hip-hop em seus trabalhos teatrais. Pioneiros nessa “abordagem” no Brasil, o grupo foi fundado em 1999 e de lá pra cá segue se reinventando. Para Estrela D’Alva, foi no Bartolomeu que ela encontrou pertencimento, identidade e um lugar para trabalhar as suas diferentes formas de expressão: ‘‘Eu não sei se fosse só o teatro eu conseguiria’’, afirma. 

Foto: Nereu Jr/Divulgação PULSA

‘‘Acho que o teatro hip-hop tem a ver com o rap também, porque ele tem essa característica da impossibilidade. Quando tudo dizia que aqueles jovens iam morrer, quando tudo estava preparado para que eles fossem aniquilados, eles criaram uma possibilidade da impossibilidade’’.

Mais tarde, Roberta trouxe o “Poetry Slam” — competição de poesia falada — ao Brasil, em 2008. Três anos depois, a brasileira ficou em terceiro lugar na Copa do Mundo da “modalidade”, em Paris. No ano seguinte, venceu uma competição no Green Mill Jazz Club, em Chicago. O assunto sempre é comentado nas entrevistas concedidas pela artista, mas na conversa com a DeFato, o tema foi abordado de forma diferente. 

Questionada se a ‘‘missão da sua vida’’ era se expressar por meio do teatro, do slam e até mesmo na TV, ela parou para refletir e disse: ‘‘Eu não sei se a missão da minha vida. Eu gosto de contar histórias, não tenho essa coisa muito messiânica ou como o Brown canta: ‘Eu tenho uma missão, e não vou parar’. Para mim, é mais uma busca, uma busca pela transcendência que a poesia tem. Uma busca pelo poético, por como sair desse mundo’’.

‘‘Assustadoramente atual’’

Durante sua passagem por Itabira, Roberta esteve junto ao Núcleo Bartolomeu de Depoimentos apresentando o espetáculo ‘‘Terror e miséria no terceiro Milênio’’, inspirado na famosíssima ‘‘Terror e Miséria do Terceiro Reich’’, peça do dramaturgo e poeta alemão Bertolt Brecht, escrita entre 1935 e 1938. A apresentação faz um paralelo daquela época, da sociedade alemã no contexto da Segunda Guerra Mundial, com a conjuntura política brasileira dos últimos anos, onde houve uma escalada fascista e autoritária. ‘‘Não pode moscar senão daqui a três anos estamos lá de novo, amargando mais quatro. O fascismo tem se mostrado mais do que nunca desde o 8 de janeiro’’, argumenta. 

Foto: Nereu Jr/Divulgação PULSA

‘‘Todos esses anos deram muita licença e tiraram a vergonha de quem ‘estava no armário’. (…) Na Alemanha, a cada esquina que você vai tem um monumento falando do nazismo. Os caras falam que é para deixar mesmo, para nunca mais se esquecer. Não se pode esquecer do que aconteceu’’, pontua.

Volta à Itabira?

Roberta confessou ter achado Itabira uma cidade um pouco inusitada, além de ter adorado o público itabirano: ‘‘Achei a cidade muito louca, em relação à forma em que se convive a modernidade com coisas das décadas de 1970 e 1980. Achei difícil de decifrar. Mas o povo é ótimo. Acho que eu precisava de mais uma semana aqui pra entender os passos comuns de Itabira’’.

Em breve, em novembro, Roberta deverá estar de volta para um evento de Slam que acontecerá na cidade, mas que ainda não teve sua programação divulgada. 

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