Na década de 1970, a juventude ouro-pretana tinha um programa previsível nos finais de semana: ver filmes de faroeste no Cine Vila Rica. A plateia adolescente vibrava com as estripulias de John Wayne, Howard Hawk, Henry Fonda, Charles Bronson e Franco Nero. Ainda sobrava espaço para o italiano Giuliano Gemma. A fórmula do sucesso era simples pancadaria. O embate entre mocinho e bandido literalmente roubava a cena.
Esse entrevero clássico simbolizava a eterna luta do bem contra o mal. E, naqueles enredos, o primeiro (o mocinho) costumeiramente surrava o segundo. É da natureza das coisas. Em raras e desonrosas exceções acontecia o contrário. O tiroteio – entrecortado por fenomenais sopapos – levava o distinto público ao delírio. A bala era a lei. A rapidez no gatilho era garantia de sucesso e sobrevivência.
Até no amor levava vantagem quem mirasse o alvo com maior precisão. O mais habilidoso no manuseio da arma de fogo ditava cátedras. Para o bem ou para o mal. A democracia só existia para os frequentadores do “Vila Rica”, pois algumas pessoas ainda conseguiam torcer livremente para os malfeitores. E ninguém estranhava essa opção. A balbúrdia mostrada na telona desconhecia os limites da ética e escrúpulo. Um grupo de arruaceiros- quando invadia indefeso povoado- estuprava donzelas, espancava idosos, assaltava bancos, matava homens, degolava animais e comia os religiosos.
Quanto sacrilégio! O xerife – única autoridade constituída – não passava de simples panaca. A covardia e sacanagem prevaleciam até que pintava na paisagem o “artista principal”. Normalmente um cavaleiro de boa aparência, muito bem vestido e armado até os dentes. Esse personagem chegava montado num garboso cavalo. Era mítico. Sempre aparecia ao pôr do sol. Era um sujeito violento. Atirava em todas as direções. Esmurrava deus e o demônio.
Num piscar de olhos, botava a turma de pilantras pra correr. Recompensa por tamanha coragem e heroísmo: normalmente papava a dama mais bonita da localidade. Essa parte do filme era infalível. Mas a vida sempre imita a arte, principalmente a sétima das artes. Percebi essa verdade com o passar do tempo. Ainda assim, jamais imaginei que, um dia, ainda seria um ator coadjuvante de cenários de bang-bang. E todo o mundo é bandido ou vítima na representação macabra do cotidiano. Não tem escolha.
Cada “astro” representa o seu papel. É uma questão de vida ou morte. E, pior. Bandidos e artistas usam os mesmos figurinos. Impossível discernir um do outro na nossa atual esculhambação social. Hoje, a população tupiniquim está refém de neobandoleiros urbanos. Esses sorrateiros marginais invadem cidades, sequestram pacatos cidadãos e detonam bancos. Não dão a mínima bola para a força policial. O glamour de Hollywood está muito distante desse tosco dia a dia. A realidade é dura. Um trabalhador tem única dúvida quando vai ao serviço diariamente: não sabe se volta para casa. Às vezes, retorna com uma certeira bala perdida encravada nos miolos. É muito difícil esse estado de coisa.
Hoje em dia, a criminalidade não tem um alvo preferencial. Homens, mulheres e crianças são autênticos heróis da resistência. Crianças, mulheres e homens também são potenciais delinquentes. É notável essa probabilidade de inversão de lado e valores. O joio se misturou integralmente ao trigo.
Um aspecto básico diferencia a fantasia das antigas telas de cinema daquilo que se vê nas ruas desse país tropical: a população aguarda ansiosamente pelo artista principal. E o corajoso caubói jamais dá as caras. Nesses tempos bicudos, a ordem vai se desmilinguindo. O mal suplanta claramente o bem. E a escumalha que se dane. Aqui o panaca do xerife é o poder constituído. Esse é o caos nosso de cada dia.