O rapaz era alto, moreno, magro e invariavelmente trajava um paletó azul. As calças sociais variavam de cor. O paletó, porém, nunca. Caminhava com passos firmes e mantinha a cabeça erguida. Olhava com insistência para um ponto indefinido no horizonte. Jamais virava para os lados. Um detalhe não passava despercebido: o homem normalmente trazia uma máquina portátil de datilografia na mão direita. Era sua companheira inseparável.
Jamais vi esse cidadão em companhia de uma mulher, nem de homem ou criança. Sequer um cachorro o acompanhava. Não dialogava com ninguém. Era um solitário na verdadeira acepção do termo. Essa figura caminhava o dia inteiro pelas ruas de Ouro Preto, na década de 1970. Perambulava por toda a cidade. Em algumas ocasiões foi visto em Mariana. Aparentemente dormia muito pouco. Não sei se tirava um tempo para almoçar, jantar ou tomar café. Provavelmente se alimentava de forma frugal. Já trombei com ele no Alto-da-Cruz, Rua São José e até no Morro da Queimada.
Uma madrugada nos encontramos na Rua Direita. O insólito personagem descia a ladeira com rapidez, e eu subia lentamente. Ele com sua solidão, eu com os meus fantasmas. Carregava a máquina com dificuldade, aparentava cansaço. Esbocei um sorriso e desejei uma boa noite. A resposta foi um silêncio profundo. Não ouviu, ou não quis escutar a saudação. Ignorou solenemente a minha presença, que também não significava nada.
Um dia, o homem e a máquina passaram nas proximidades de minha casa. Ouvi meu pai comentar: “esse camarada é o melhor batedor de máquina da cidade”. Descobri, então, que o sujeito fazia trabalhos de datilografia em domicílio. Ele batia máquina com perfeição, como se dizia naquele tempo do onça.
Nunca soube o nome desse exímio datilógrafo. Só sei que ele exercia a sua função em escritórios, casas de família, repúblicas de estudantes, escolas e órgãos públicos. Desenvolvia uma atividade intensa, possivelmente com muita competência. O seu talento com os dedos devia ser bem remunerado. Pelo menos se vestia impecavelmente.
Numa tarde de verão, em pleno domingo, percebi quando ele saiu de uma casa suspeita, atrás da Escola de Farmácia, nas proximidades da Praça Tiradentes. Essa frase longa é apenas um truque para esconder a antiga zona boêmia da cidade. Quase três da tarde, um sol de estalar mamona, e lá ia ele. O homem do paletó azul se esquivava sorrateiramente pelas ruas próximas ao chamado “Caminho Novo”. Pela primeira vez, a máquina portátil não compunha a paisagem.
A cena inusitada provocou algumas interrogações em minha cabeça adolescente. O que aquele profissional habilidoso com os dedos estava fazendo naquele lugar? Onde foi parar a máquina de escrever? Será que ele esqueceu o seu instrumento de trabalho no interior daquela casa? O sujeito estava batendo algo para alguma mulher de “vida difícil”? As respostas do meu inconsciente foram bem mais óbvias que as perguntas maliciosas.
Interessante como certos fatos banais e inexplicáveis grudam em nossa mente para sempre. Um homem passeava com uma máquina de escrever pelas ruas, becos e ladeiras da antiga Vila Rica. Uma imagem simples, insignificante, que jamais deixou de ilustrar o painel colorido da minha vida.
Em Tempo: Alguns anos depois, descobri que o misterioso datilógrafo (alguém se lembra dessa profissão?) tinha um nome tão exótico quanto: Gumercino.
Fernando Silva é jornalista e escreve sobre política em DeFato Online.
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