O ‘lockdown’ tupiniquim é apenas uma ficção para inglês ver

Na coluna semanal, o jornalista Fernando Silva comenta as medidas restritivas desproporcionais, seletivas e pouco efetivas ao controle pandêmico.

O ‘lockdown’ tupiniquim é apenas uma ficção para inglês ver
A cidade de Araraquara, no interior paulista, adotou lockdown com proibição de circulação nas ruas. Foto: Prefeitura de Araraquara
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Lockdown é bloqueio total ou isolamento radical, em livre tradução. O termo inglês virou expressão planetária na pandemia. É falado nos quatro cantos do mundo. Vacina, máscara e isolamento social são a santíssima trindade da nossa sobrevivência de cada dia. Essas três entidades vitais pintaram individualmente no Brasil. Uma de cada vez, em tempos distintos. E, desde sempre, perambulam pelo imenso território nacional.

As vacinas viraram artigo de luxo. Os imunizantes são cobiçados pela população indefesa, piratas governamentais e ladrões comuns (oportunistas fura-filas). As máscaras se transformaram em peça de luxo do vestuário, embora muita gente prefira andar despida, inclusive quem deveria manter as narinas institucionais bem agasalhadas. O lockdown é o único membro da tríade que não se adaptou à Terra de Santa Cruz.

Mas, o que é isso (lockdown)? Um autêntico deserto urbano. A ausência absoluta do tudo numa via pública. Onde tem lockdown nem cachorros vadiam. Alguns asnos desmascarados ainda se aventuram pelas ruas, praças, avenidas e becos. Esses quadrúpedes, porém, podem ser capturados. Uma estrebaria legal é o destino legítimo deles.

A isolação completa minimizou a tragédia sanitária em algumas nações, na primeira onda do novo Coronavírus. Essa estratégia preventiva teve uma consequência fundamental: a chamada segunda onda não bateu com tanta intensidade no Velho Continente, por exemplo.

As ruas desertas de Paris, Roma, Londres e Madri marcaram o imaginário global no início do ano passado. Uma cena bastante comovente ilustrará os livros de história das futuras gerações: o papa Francisco, de joelhos, orando solitariamente defronte a um velho crucifixo de madeira, em plena Praça de São Pedro. A chuva caía torrencialmente em Roma, na ocasião. O aguaceiro mais parecia lágrimas derramadas pelo terrível sofrimento humano.

O primeiro- ministro inglês Boris Johnson foi o mais cintilante negacionista, no início da pandemia: “all this is just little flu”, teria ensinado o premier britânico aos súditos da rainha Elizabeth. O vacilo foi fatal. O imponderável cobrou um alto preço do mandatário. O político foi infectado pela Covid-19. O quadro clínico se agravou e Boris esteve à beira da morte. Ele tardiamente percebeu que a encrenca sanitária era muito mais complexa que uma simples gripezinha. Tarde demais. Milhares de ingleses já haviam tomado o rumo do cemitério. Consequência da displicência aristocrática: o lockdown foi implantado compulsoriamente depois desse drama do chefe de governo. O Reino Unido se superou e tem suportado a nova avalanche de contaminações com relativa eficiência, apesar de alguns cadáveres a mais.

E, agora, justifica-se o título dessa crônica. O Brasil demonstra para a Inglaterra (e o resto do mundo) como não se faz um lockdown. Não há isolamento absoluto por essas bandas. Aqui existe uma catastrófica socialização do ajuntamento irresponsável (uma aglomeração com pessoas de todos os níveis sociais e idades diversas). No isolamento tupiniquim, persistem filas homéricas em portas de bancos, casas lotéricas apinhadas de apostadores (dentre outros) e transporte público com lotação pra lá de excessiva. O mentiroso lockdown de Pindorama leva uma multidão para hospitais e funerárias.

O suposto isolamento radical da pátria do samba e da necrópole apresenta listas de inclusões e exclusões: o muito que se pode e o pouco que não se pode funcionar. A primeira relação é muito mais intensa que a segunda. Quase nada pode fechar (apenas sepulturas). Afinal, a economia é mais importante que a vida. Mas, atenção: defuntos não frequentam supermercados, não comem em restaurantes, não compram em lojas e nem fazem investimentos em instituições financeiras. Onde há mortos, não há mercado. Na tétrica realidade brasileira, o trabalho do coveiro é o mais essencial de todos.

Em tempo: o lockdown fez uma rápida visita ao Brasil. Esteve em Araraquara, interior de São Paulo. A cidade tem 238 mil habitantes. No período de 21/02 a 23/02, a Prefeitura decretou isolamento social completo. Fechou-se tudo, inclusive lotéricas, bancos, postos de gasolina e supermercados. As ruas ficaram desertas. O resultado da ousadia foi animador. A transmissão da doença teve uma redução de 53%. O número de internações registrou uma queda de 28% e a média móvel de casos despencou de 189 para 87. Araraquara poderia ser um bom exemplo para o “corajoso” prefeito de uma “Cidadezinha Qualquer”.

 

Fernando Silva é jornalista e escreve sobre política em DeFato Online.

O conteúdo expresso é de total responsabilidade do colunista e não representa a opinião da DeFato.

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