A celebração do Natal, até a segunda metade do século passado, foi momento único. A vida era mais simples, porém, intensamente resplandecente. Os tempos com outros costumes. A sociedade ainda não havia conseguido banalizar a violência, por exemplo. A “Indústria Cultural” não passava de uma leve projeção teórica da chamada “Escola de Frankfurt”. O mais nocivo produto social- o consumismo exacerbado- ainda não dominava o cotidiano das pessoas. Naqueles idos, prevaleciam o espírito de solidariedade e a onipresença de um recém-nascido. Um pobre e indefeso menino na manjedoura, num lugar qualquer do Oriente Médio. Não importa onde. E essa criança sempre estava muito próxima de cada um de nós, embora distante e imaterial (intocável). Ainda assim, esse pequeno ser mexia fundo na alma da gente, principalmente no final de cada ano.
A missa da meia-noite era aguardada com imensa expectativa. Era um culto impregnado de fé e misticismo. A lembrança daquele momento solene ainda ilustra o meu imaginário. As imagens permanecem frescas na memória. O aroma forte e agradável do incenso se esparramava por todo o interior do templo setecentista. O som das campainhas- que ecoava pelos quatro cantos- era um chamamento à razão. E, nós- crianças descompromissadas com a realidade- despertávamos de uma sonolência mórbida. A mistura de sons e perfumes parecia vir do além. Pelo menos, essa era a impressão que ficava.
O ofício religioso era longo e extenuante. As cantigas do coral tomavam todo o entorno da “Casa do Senhor”. Até lá fora eram ouvidas. Não é possível entender as mensagens que as músicas de Lobo de Mesquita pretendem transmitir, pois são entoadas no mais puro latim. Ainda assim, esse modorrento ritual fazia valer a pena o autêntico sacrifício da mais importante cerimônia do catolicismo.
A potente voz do sacerdote partia da capela-mor, atravessava o arco do cruzeiro e se perdia no interior da nave. O silêncio dos fiéis era profundo. Todos, compenetrados e cansados, ouviam as recomendações do suposto porta-voz de Deus nessas paragens. A oratória era um misto de prolixo com erudito. Os padres daquela época eram especialistas em longos sermões litúrgicos. Gritavam demais. Essa “ladainha”, porém, pouco importava. E muito menos incomodava. Afinal, a maioria do público dormia. As igrejas barrocas- frescas e normalmente silenciosas- são locais ideais para um santo cochilo.
De minha parte, como prefiro o profano ao sagrado, sempre troquei Natal por Réveillon. Os festejos natalinos não fazem bem a mim. Nunca fizeram. A comemoração é falsa, vazia e sem sentido. Para começo de conversa, Jesus não veio ao mundo nessa data (25/12). Há bem mais alambique que religiosidade nessa tradição cristã. O nascimento do ilustre judeu é sinônimo de comércio. Nessa época do ano, negocia-se tudo. Vendem-se o recém-nascido, a mãe dele, o pai, os reis visitantes, os bois e as vacas. Nem o capim da estrebaria consegue escapar dessa gula mercantilista.
Por isso, acho melhor as irreverências da viradas de ano. Gosto das imoralidades clássicas. Não aprecio padrões sociais e religiosos. Até o fogaréu da noite de Ano Novo é mais interessante. Tanto o que se ouve e se vê, quanto o etílico. O 31 de dezembro é dia de se esbaldar, sem lesões maiores na consciência e distante das culpas provocadas pelo famigerado pecado. Mas até essa farra vai se acabando. O Réveillon perdeu muito do entusiasmo e simbolismo de outrora. Hoje, o evento é muito previsível. O encanto que restou é como a exuberância fugaz da espuma do champanhe.
Enfim: A Missa do Galo dessa narrativa se passou no interior da monumental Igreja de Nossa Senhora da Conceição de Antônio Dias, em Ouro Preto, numa época que já vai se perdendo na inevitável bruma do tempo. Esse texto, que ressuscitou na DeFato, foi publicado originalmente não sei onde, como e, muito menos, porquê.
Fernando Silva é jornalista e escreve sobre política em DeFato Online.
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