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Por que os antigos itabiranos tanto detestavam o poeta Carlos Drummond de Andrade?

Foto: Arquivo DeFato

Meados dos anos 1970. A atividade minerária atingia o apogeu em Itabira. A instalação da moderna usina de beneficiamento de minério da mina do Cauê atraía uma multidão de trabalhadores. A sensação era de que toda a população trabalhava na velha Cia Vale do Rio Doce (CVRD).

 

As ruas das cidades viviam lotadas de operários com camisas e calças de surrados brins amarelos. Alguns (a chefia) trajavam camisas marrons. Essa multidão usava capacetes de todas as cores: brancos, azuis, amarelos, verdes e vermelhos. As botinas negras – com detalhes em amarelo – completavam o peculiar figurino.

Durante 24 horas essa gente uniformizada perambulava pelas ruas, avenidas e praças. Esse pessoal – com a inseparável vestimenta – frequentava cinemas, lojas, armazéns, igrejas, bares, restaurantes e até a zona boêmia. Os coletivos da Cisne circulavam repleto de capacetes. Itabira, dessa forma, parecia o maior acampamento do mundo. O município até poderia ocupar um lugar de destaque no “Livro dos Recordes”: o mais extenso acampamento a céu aberto do planeta. 

Os itabiranos sofriam muito com a exploração do minério. A maioria das ruas era muito mal cuidadas. Algumas de chão batido, em plena região central. Outras com rudimentares calçamentos de pedras de ferro. E, para piorar, uma densa nuvem de poeira cobria inescrupulosamente a atmosfera. A poluição era tão intensa que a pele dos moradores brilhava. Nada conseguia remover o resíduo da hematita (mineral ferroso) impregnado nos corpos. Esse povo era de ferro.  

Uma certeza restava clara: Itabira e a CVRD se confundiam. A empresa era uma extensão das casas dos seus empregados. Ninguém conseguia definir onde terminava a cidade e começavam as minas. Difícil compreender onde findavam as minas e iniciava o perímetro urbano. 

Nessa paisagem rude, a maior parte dos itabiranos compartilhava um exótico sentimento: o intenso ódio a Carlos Drummond de Andrade. A origem da mágoa profunda era um mistério. Essa catarse coletiva seria (ou ainda é) um atraente tema para pesquisas de antropólogos, sociólogos, filósofos e até psiquiatras. Nem Freud conseguiria explicar o motivo de tamanha ojeriza. O mais talentoso poeta brasileiro sofria com o rancor de seus conterrâneos. Essa era uma perturbadora realidade.  

Havia indícios de que a CVRD, de maneira subliminar, plantou essa rejeição no imaginário popular. O poeta era duro nas críticas à empresa. “O Gauche” não contestava a exploração da mais rica jazida de ferro do mundo. A mineração era uma atividade inevitável. Ele reivindicava, porém, que Itabira recebesse uma compensação justa pela irreversível degradação ambiental. 

A mineradora revidava sussurrando a seguinte ladainha nos ouvidos dos seus “filhotes”: “eu dou tudo para vocês: 15 salários por ano, casas, medicamentos, comidas, hospital, gêneros alimentícios e até áreas de lazer para sua família. Eu sou a mãezona de todos. Eu quero que me defendam dos ataques desse falso itabirano. Ele se diverte, em Copacabana, o dia inteiro, enquanto me apunhala sem dó, nas páginas dos jornais”. 

A lavagem cerebral começou com uma mentira letal: “o desprezo de Carlos por Itabira”.  A conclusão do poema Confidência do Itabirano foi usada “eficientemente” para envenenar a alma dos moradores da “cidadezinha qualquer”. “Itabira é apenas uma fotografia na parede, mas como dói”. Foi fatídico. E o pau comeu. A ideia central foi completamente desvirtuada. E tome mexerico rasteiro. “Você viu que insulto? Quanta humilhação! Itabira não presta pra nada. Para esse intelectual, a nossa cidade não passa de uma amarelada fotografia na parede. Drummond não ama sua terra. Detesta-a, tanto que nunca mais botou os pés aqui”. E a futrica contaminou todo mundo. 

A partir daí, a indignação só aumentou. E cresceu tanto que virou a mais complexa aversão. O “Poeta Maior” sempre tentou esclarecer o sentido do verso polêmico. Mas, em vão. Nos anos 1970, ele deu o mais sensível depoimento sobre a já famosa “fotografia na parede”. E num tom, carregado de emoção, assim se expressou: 

“Uma coisa que acho estranho é a má interpretação de meu poema. Acharam que eu humilhava minha terra, quando era justamente o contrário. Depois de sair de lá, guardo sua imagem na parede de minha casa. O mais eu perdera:  a casa de meus pais, os amigos de infância, os parentes quase todos. Felizmente, pessoas mais sensíveis entenderam este verso, que é um soluço nostálgico”.

Nos dias de hoje, Carlos Drummond ainda poderia acrescentar: entenderam ou preciso desenhar? 

A constrangedora repugnância só começou ser revertida a partir de 1982. Naquele ano, o prefeito Jairo Magalhães Alves inaugurou o teatro do Centro Cultural (atual Fundação Cultural Carlos Drummond de Andrade). Na década de 1990, Jackson Tavares implantou o Museu de Território “Caminhos Drummondianos”.

O petista ainda construiu o Memorial Carlos Drummond de Andrade, magnífico projeto do arquiteto Oscar Niemeyer.  Ronaldo Magalhães, em seu primeiro mandato, desapropriou e restaurou a casa dos pais do poeta, na Praça do Centenário. A remontagem do casarão da fazenda do Pontal (a antiga Fazenda dos Doze Vinténs) foi outra importante realização da época. 

Valeu a pena transformar Drummond em política pública. O resultado é bastante alentador: hoje, Itabira tem muito orgulho do seu filho mais ilustre. Pelo menos, tenho esse pressentimento.

Fernando Silva é jornalista e escreve sobre política em DeFato Online.

O conteúdo expresso é de total responsabilidade do colunista e não representa a opinião da DeFato

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