Ouro Preto é intocável, perene, solene. A vida da gente, porém, inexoravelmente passa. E voa. A fila segue o seu percurso natural. Lentamente tudo acaba. A finitude é uma constrangedora realidade. A performance humana no palco dessa existência não passa de meros segundos cósmicos. Num piscar de olho, tudo vira história. Nada mais.
Essa divagação provoca imediata consequência: uma suave viagem ao tempo de adolescente, lá na antiga Vila Rica, na longínqua década de 1970. Uma época em que era feliz e sequer sabia disso. Naquele idos, acompanhava – com muita emoção – as magníficas celebrações litúrgicas. Os velhos templos setecentistas eram mananciais de sonhos e encantamentos. As músicas de Lobo de Mesquita buliam com o meu espírito irrequieto. A celebração era 90% em latim. Os 10% restantes eram comunicação na “última flor do Lácio, inculta e bela”. Apenas no final da missa, o sacerdote fazia algumas recomendações no idioma de Camões. O celebrante se esbaldava no luxo e ostentação. Os paramentos – crivados de diamantes e costurados com fios de ouro – completavam a sacra paisagem. Não duvide dessa descrição. Até hoje, essa riqueza pode ser apreciada nas monumentais igrejas da cidade histórica.
Mas, em todo esse enredo, prevalece a contradição tão típica da arte barroca. O profano também marcava presença nas ruas dos inconfidentes. Um simbolismo bem peculiar ilustra essa desarmonia clássica: a zona boêmia ficava bem próxima à Praça Tiradentes. O ex-prefeito José Benedito Neves (o Zé Bené), conservador como ele só, tachava a praça do mártir da Independência por “instituto da vagabundagem”. E com razão. Aquele espaço público era palco de constantes manifestações dos “sem ter o que fazer”. Eu não perdia uma oportunidade de zanzar por ali, o dia inteiro. Nesse picadeiro mítico, já dei de cara com Chico Buarque de Hollanda, Caetano Veloso, Vinícius de Moraes, Jô Soares, Maria Bethânia, Fafá de Belém e outros monstros sagrados da cultura tapuia. Nunca consegui dialogar com nenhum deles. E nem tentei.
Uma imagem desse tempo ficou significativamente grudada em minha memória. Caminhava a esmo pela rua São José. Na encantadora Ponte dos Contos, vi um homem alto, calvo e ligeiramente encurvado. Esse sujeito estava acompanhado de uma senhora e outra mulher bem mais jovem. O trio conversava animadamente com um grupo de estudantes universitários. Achei a movimentação inusitada, mas não dei a menor bola para aquilo. Um pouco mais adiante, informaram-me o nome dos misteriosos turistas: o poeta Carlos Drummond de Andrade e seus familiares (provavelmente, a esposa e filha). Continuei batendo pernas. Afinal, não tinha a mínima ideia do significado (ou importância) daquela pequena aglomeração.
Mas era tempo de Festival de Inverno. Nessa época do ano (julho), a temperatura noturna despencava sem dó. Uma densa cerração cobria ladeiras, casarões coloniais e os misteriosos becos do centro histórico. Um bando de hippies – malcheirosos e multicoloridos – perambulava em meio ao intenso nevoeiro. O enjoativo perfume da maconha exalava do exótico cortejo. A turba mais parecia fantasmas do século XVIII. Um momento incrível.
Todos os anos, no dia 8 de julho, aniversário da cidade, uma equipe de futebol profissional enfrentava a seleção amadora de Ouro Preto. Em companhia de meu pai, fui assistir a um desses espetáculos do ludopédio (baixou Drummond aqui, o outro). Entrou em campo um adversário com vistosa camisa vermelha. E essa equipe começou levando um baile dos “craques” ouro-pretanos. Meu “velho” não conseguia conter a euforia e berrava insistentemente: “pernas- de- pau, fila-boias da Vale. Vocês vão levar a maior ferrada de suas vidas”. Era o time do Valeriodoce.
Os jogadores da esquadra itabirana se arrastavam em campo. Até parecia que haviam devorado suculenta feijoada. O primeiro tempo acabou. Um improvisado placar exibia o mais improvável dos resultados: Ouro Preto 1 x 0 VEC. Na segunda etapa, os atletas de rubro retornaram com a potência de uma locomotiva repleta de minério. E literalmente atropelaram o “scratch” ouro-pretano. Resultado final: Ouro Preto 1×6 VEC – já vi outro resultado igual a esse, em algum lugar de um passado nem tão distante.
Uma imagem, contudo, ficou colada para sempre “nas minhas retinas tão fatigadas”: o goleiro do time vencedor. Um negro grandalhão e muito forte. Um guarda-roupa chamado Arésio. O sujeito era Gulliver junto a anões da Branca de Neve. Os incríveis anos 1970 foram assim. E, como se vê, duas inesperadas circunstâncias me apresentaram Itabira. Prazer em conhecê-la, dama de ferro!
P S: O gol da casa. Um jogador chamado General – craque do Aluminas – tinha uma bomba no pé esquerdo. Falta na entrada da área. O atleta ouro-pretano disparou um tirambaço. Arésio bateu roupa. Alguém aproveitou o rebote e estufou as redes do VEC. E só.