Kassio Nunes Marques – ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) – cometeu monocrática canelada. No início deste mês (3/4), o “caçula” da corte autorizou o acesso irrestrito de fiéis às igrejas. A decisão polêmica foi um desatino no ápice da segunda onda da pandemia. Consequência: os templos religiosos também escancararam as portas para a Covid-19. Como se vê, um juiz evangélico operou uma atitude pouco cristã.
A proeza, porém, teve vida curta. Uma semana depois, Luís Roberto Barroso cassou a liminar do colega e jogou a encrenca no colo do plenário. Resultado do imbróglio: no tapetão maior do país, o ungido de Jair Bolsonaro sofreu acachapante derrota por 9×2. Os magistrados decidiram que estados e municípios têm autonomia para deliberar sobre o abre/fecha das igrejas.
Essa história, todavia, revela uma bizarra estratégia político/religiosa. Quando permitiu o livre acesso às ca$a$ do “todo poderoso”, Nunes Marques acatou uma solicitação da enigmática “Associação Nacional de Juristas Evangélicos”(Anajure). Que coisa mais estapafúrdia. A tal Anajure é instrumento de informal fundamentalismo tapuia. Coisa bem típica de republiquetas de bananas.
O assanhamento pouco laico de algumas entidades religiosas tem incentivo explícito de Bolsonaro. Num “mítico” momento de êxtase, o messiânico morador do Palácio da Alvorada destilou sacro veneno retórico: “vou indicar uma pessoa extremamente evangélica para a próxima vaga do Supremo”. E cumpriu a promessa.
A premeditação presidencial possibilitou o aborto do famoso desconhecido Kassio Nunes – uma fina flor da heterodoxia constitucional. “Tempos estranhos!” – exclamaria o ministro Marco Aurélio Mello – o decano do STF, que também não abre mão de intervenções exóticas, nas sessões da corte.
Antigamente (numa época nem tão distante), o livro sagrado da magistratura era a Constituição. Nos dias de hoje, determinado segmento ideológico tenta impor a Bíblia – com suas múltiplas possibilidades pragmáticas e interpretações pessoais – como o farol do poder Judiciário. Uma heresia sem tamanho. Afinal, os “porta-vozes de Deus” difundem as escrituras divinas de acordo com suas conveniências, principalmente pecuniárias. A mistura do sagrado com a política nem sempre deu bons resultados. A história é testemunha disso.
O ministro Alexandre de Moraes foi brilhante na fundamentação do seu voto e tocou na ferida com precisão cirúrgica: “Vivemos num Estado laico, que não interfere nas atividades religiosas. Mas esse preceito tem mão dupla: as igrejas também não podem tentar impor seus dogmas às instituições estatais”. Na mosca.
“Vou indicar um cara terrivelmente evangélico para o Supremo”, garantiu o chefe do Executivo tupiniquim. Mas, cadê a isonomia em relação às outras orientações espirituais? O brasileiro tem todo o direito de exigir ministros extremamente católicos, extremamente budistas, extremamente islâmicos, extremamente macumbeiros, extremamente ateus ou até extremamente marcianos. O STF comporta tudo isso. Afinal, vivemos numa democracia multirreligiosa.
E, no meio desse caminho, pintou a “Associação Nacional de Juristas Evangélicos”. Isso pode, Arnaldo? Claro que sim. Então, a coluna vai contribuir para o enriquecimento dessa era de extrema esquisitice (um novo “Festival de Besteira que Assola o País”- Febeapá). Fica aqui uma singela sugestão para os funcionários públicos do Judiciário – aqueles não engajados: que tal inventar uma “Associação Nacional de Juristas Ateus” (Anjureu)? Se “Deus” quiser, alguém comprará essa ideia.
PS: E aí certa meritíssima até pode indagar:
– E por que não criar uma Associação Nacional de Jornalistas Ateus?
Respondo:
– Melhor criar uma Associação Nacional de Prefeitos Ateus.
Dá na mesma.
Fernando Silva é jornalista e escreve sobre política em DeFato Online.
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