Somos personagens da maior paranoia da história da humanidade
Seria uma coriza ou o novo coronavírus? É minha habitual enxaqueca ou a Covid-19? Um terrorismo psicológico devasta o cotidiano social. Leia a crônica semanal de Fernando Silva.
“A minha gente hoje anda/falando de lado e olhando pro chão/viu?/ você que inventou esse estado/ inventou de inventar/ toda a escuridão/”, Chico Buarque de Holanda tentou cantar assim, em 1970. Essa música era um brado de protesto contra a ditadura. Um grito de desespero.
A cantiga “Apesar de Você” foi censurada pelos militares. O país estava mergulhado nos “Anos de Chumbo”. O general Emílio Médici governava com mãos de ferro (apesar do chumbo). Médici foi o terceiro general-presidente da série de cinco. A canção ícone só foi liberada oito anos mais tarde (em 1978), no final do governo Ernesto Geisel.
A história é a arte da repetição. Os fatos sempre retornam. Em cenários diferentes, com circunstâncias distintas. Os versos de Buarque revisitam os tenebrosos dias de hoje, com as devidas adaptações do momento. O brasileiro contracena num cenário de horror, de terra arrasada. Um persistente terrorismo psicológico devasta o cotidiano da massa desnorteada.
Esse teatro sinistro provoca paranoia coletiva. O Brasil não se encontra em estado de exceção (ainda não), mas a tortura psicológica é um componente do cotidiano de cidadãos (de bem ou de mal, não importa). A tragédia é comandada pelo mais implacável dos carrascos: o novo Coronavírus. Um ser maligno , amorfo, sem vida própria, que vive no “breu das tocas”. O suplício desse carrasco infalível não tem hora marcada, nem local determinado.
A morte está à espreita em palacetes dourados, barracos precários, templos monumentais ou rudes choupanas, no meio de solitárias florestas. Pouco importa. Ninguém escapa do facínora invisível. Nas ruas e praças. Nas praias ou fazendas. A “coisa” anda por todos os lugares. A realidade é assustadora. A loucura sanitária impregnou lares, favelas, prostíbulo e botequins. Acabou a paz geral. Todo o mundo vive com a Covid-19 a tiracolo.
Uma simples tosse provoca discriminação comunitária, isolamento social instantâneo ou repulsa imediata. O ser humano virou uma entidade abjeta e nojenta, apesar de cachoeiras de banhos e mergulhos constantes no imenso mar de álcool em gel. É um panorama surrealista. O mal do século (o coronavírus) não preserva gênero, raça ou opção sexual.
A humanidade inteira recebeu convite especial para um baile macabro. O cemitério é o mais concorrido “salão de festas” do planeta. Qualquer um pode dançar. Sejam mal-vindos! Os coveiros são mestres de cerimônia. O espaço funesto é livre para milionários, paupérrimos, brancos, negros, amarelos ou vermelhos. No novo barco de Caronte há lugar para todos.
E aqui, agora, a contextualização da composição de Chico Buarque, em plena pandemia: “A minha gente hoje anda/falando de lado e olhando pro chão/viu?/ você que inventou esse estado/ inventou de inventar/ toda a escuridão/”. Uma espessa escuridão envolve o planeta. A Terra está fragilizada e indefesa. A minúscula esfera azul enfrenta o mais letal dos inimigos. A vida nunca foi assim. E nada será como antes foi. Desde eras imemoriais.
O flagelo é terrível. A existência está muito estranha e complexa. Há dores imaginárias e reais. Febres concretas e abstratas. Uma pequena coriza, leve enxaqueca e indisposição física são indícios do ponto final. O caos mental não acaba assim. É tudo bastante imprevisível. O sujeito infectado recebe prévia sentença de morte. No mais das vezes, ganha indulto a poucos minutos do instante fatal. A vida não passa de um simples tubo. A fé é tudo. E nada. A verdade absoluta acabou.
PS1: O coronavírus criou moda. Pelo jeito, as máscaras vieram pra ficar. O aparato facial é mero disfarce para as mazelas do dia a dia. As sufocantes máscaras, porém, destacam um inesperado detalhe (bastante sublime) da anatomia humana: o cativante sorriso ou a profunda tristeza no olhar das pessoas. Os olhos sorriem. Agora dá pra ver.
PS2: Semana (nem tão santa) de feriado longo. É tempo de baladas intensas. Vem aí bastantes aglomerações, beijos e abraços. Os sítios periféricos- regados a álcool e drogas- ficarão lotados. Consequência: daqui a 15 dias será celebrada a paixão (não de Cristo), nas casas de muitas famílias. Que o “Filho de Deus” tenha compaixão desses despirocados parceiros do Coronavírus.
Fernando Silva é jornalista e escreve sobre política em DeFato Online.
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