O senso comum internacional apresenta uma lorota discutível. Veja essa conversa mole. “O Estados Unidos é dono da mais sofisticada democracia do mundo”. Bobagem. Há contradições e aberrações no regime norte-americano. Um deles. O sistema eleitoral de lá é esdrúxulo. A bizarrice começa no processo de votação. O modelo é pré-histórico, algo mesozoico, bastante rudimentar. O Afeganistão deve ter estrovenga semelhante (ou melhor). E antes que plantem abobrinhas na minha cabeça, amenizo. Não é necessária a implantação de urnas eletrônicas no pedaço. Nada disso. Os americanos são os animais mais “evoluídos” do sistema solar. Então, fica fácil. Eles conseguiriam inventar uma parafernália melhor para facilitar o exercício do voto.
E tem outro ponto fora da curva nessa história toda. Os eleitores ianques são autênticos bobos da corte. Por simples motivo. Votam e não elegem ninguém. Enfrentam enormes filas para manifestar a sua preferência eleitoral, mas, nem sempre os ungidos nas urnas são vitoriosos. Nesse contexto, milhões de cidadãos indicam o eventual morador da Casa Branca. E o que significa isso? Coisa nenhuma. No final das contas, apenas 538 delegados de um Colégio Eleitoral escolhem o inquilino da mais emblemática moradia da Terra. Tio Sam é testemunha dessa maluquice.
Na eleição de 2000, por exemplo, Al Gore conquistou 500 mil votos a mais que George W Bush e, no entanto, foi barrado do baile pelo restritivo Colégio Eleitoral. Em 2016, Hillary Clinton deu uma balaiada em Donald Trump. A ex-primeira dama ganhou por incrível diferença de três milhões de votos no pleito popular. Nada adiantou. O bilionário exótico assumiu o governo.
Essa conversa fiada serviu apenas para contextualizar o cenário da atual disputa. Em uma crônica anterior, grafei o seguinte: só Deus impede o triunfo de Trump. Nada a ver. O “todo poderoso” — caso ele realmente haja — não tem a mínima preocupação com as estripulias do espécime humano. E mais. A presença de Joe Biden na raia inspirou o título óbvio ululante da referida coluna. Biden saiu de cena depois de ser alvejado (metaforicamente) por um batalhão de “amigos”. O oportunista Donald Trump também foi um franco-atirador. O falastrão usou pesada artilharia contra o presidente. Foi rasteiro. Chegou a duvidar da capacidade cognitiva do mandatário. Tachou o democrata por velho decrépito.
Essa agressividade tinha pragmática justificativa. Donald imaginou que a insidiosa desqualificação garantiria a antecipada conquista do poder. Aconteceria um verdadeiro massacre no final das contas. O tiro, porém, saiu literalmente pela culatra. A desistência do “velho” possibilitou a ascensão de Kamala Harris, até então, uma inexpressiva coadjuvante. Aí o “inesperado fez uma surpresa”. Harris entrou no páreo com sangue nos olhos. A mulher exibe imensa simpatia, muito carisma e retórica avassaladora. Transformou-se num eficiente antídoto contra o veneno da serpente Trump.
Ao torpedear Joe Biden, o republicano cometeu crasso erro de cálculo. Essa bandeirada poderá colocar um ponto final na sua trajetória. Em outras palavras. O “cabelo russo” cutucou Kamala com vara curta. Fez besteira. A fera dormia eternamente em berço esplêndido. E despertou com tudo. As últimas pesquisas de opinião são favoráveis à vice-presidente. Claro, se a eleição fosse hoje. Mas isso não significa nada. Afinal, o sufrágio é no Estados Unidos.
P.S.: Nos debates das eleições de 2016, Donald Trump demoliu Hillary Clinton impiedosamente. Foi grosso, estúpido e misógino. Agora é diferente. Kamala Harris é o mais perfeito contraponto ao arruaceiro. A madame encarna o tipo barraqueira raiz. O primeiro debate entre os dois candidatos, hoje, 10 de setembro, na emissora ABC News, poderá dar contornos definitivos à sucessão americana. Aí está um bom programa para essa noite. Tem cara de “Era Uma Vez no Oeste”.
Fernando Silva é jornalista e escreve sobre política em DeFato Online.
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