No centro da pandemia: enfermeira revela o pior momento da história do Hospital Nossa Senhora das Dores

Na linha de frente de atendimento aos casos de Covid-19, Sofia Adelino Marques fala do momento dramático vivenciado em Itabira

No centro da pandemia: enfermeira revela o pior momento da história do Hospital Nossa Senhora das Dores
Sofia Adelino Marques, 30, enfermeira do Hospital Nossa Senhora das Dores. Foto: arquivo pessoal
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*Por Fernando Silva

“Vejo pacientes da idade dos meus pais e do meu irmão sendo internados, sem comorbidades. Nesses momentos, eu só consigo pensar nos meus entes queridos. Por vezes, me pego imaginando receber um deles. Tenho muito medo e não consigo conter o choro”, lamenta Sofia Adelino Marques, 30, que conta oito anos de experiência na área hospitalar.  Ela se formou em Enfermagem na Fundação Comunitária de Ensino Superior de Itabira (Funcesi), em 2013. A grave crise sanitária faz parte da rotina dessa profissional da saúde. Na entrevista a seguir – com muita emoção e chegando às lágrimas – Sofia revela a terrível e caótica situação do Hospital Nossa Senhora das Dores, em plena pandemia do novo Coronavírus.

DeFato: A enfermagem, pelo que se percebe, é um dos grandes ideais da sua vida. Algum dia, mesmo quando estudante, a senhora imaginou que enfrentaria uma grande tragédia humana como essa (a pandemia do novo Coronavírus)?

Sofia Adelino Marques: Completo oito anos de atuação hospitalar, esse ano. Nunca passei por nada parecido. Nunca imaginava vivenciar uma situação tão delicada e sofrida. E acredito que, no exercício da minha profissão, não teria situação pior pra ser vivenciada.

DeFato: A senhora, que já foi devidamente imunizada (recebeu as duas doses da vacina), como se encontra psicologicamente? A senhora se sente emocionalmente mais segura depois da imunização?

Sofia: Sim, eu já tomei as duas doses da vacina e, por isso, me sinto mais segura. Mas é sabido que a vacina não nos impede de sermos contaminados, e sim de progredir para um estágio grave da doença. Há exemplos recentes de profissionais próximos a mim, que vacinados testaram positivo com sintomas leves, o que é esperado. Esse exemplo demonstra que, mesmo quando vacinados, devemos manter os cuidados.

DeFato: Essa nova realidade impõe uma rotina intensa e muito desgastante para os profissionais da saúde. Como se encontra o seu limite físico e emocional?

Sofia: Acredito ainda não estar no meu limite. Tenho um tempo pra descanso fora do ambiente hospitalar. Até um mês atrás, me encontrava em dois empregos, e acredito que seria pior, vivenciando dias tão desgastantes, se ainda me encontrasse nos dois. Hoje, só o hospital é capaz de trazer uma carga pesada, tanto física quanto emocional. Realmente, é um momento que exige maior dedicação de todos, enquanto equipe multiprofissional. Enfermeiros, técnicos de enfermagem e fisioterapeutas geralmente têm dois empregos. Então, é fácil chegar à exaustão, cumprindo 24h ou até 36h de plantão. Principalmente, quando vem a necessidade de se fazer extra. Algumas vezes, pra suprir o afastamento de um colaborador sintomático, ou até mesmo para atender demanda maior de pacientes, que não só aumenta em números, mas também em gravidade dos quadros clínicos.

DeFato: Nós, que acompanhamos tudo isso à distância, não conhecemos detalhadamente a rotina da estrutura da saúde, nessa crise sanitária. A senhora poderia descrever, ainda que sucintamente, a realidade do interior da instituição (Hospital Nossa Senhora das Dores)?

Sofia: A administração do Hospital e a coordenação do pronto atendimento, setor onde eu trabalho hoje, estão trabalhando e estudando incansavelmente uma forma de atender toda a demanda, que estamos recebendo. Já foram feitas muitas mudanças e há novas para acontecer. Precisamos expandir os leitos, pois a demanda tem sido cada dia maior. Atingimos nossa superlotação, e o que nos salva, nesse momento, é a transferência desses pacientes. Todos os pacientes com quadro de Covid, que se internam hoje, sem exceção, são cadastrados na central de leitos, pra que possamos liberar leito pra um próximo paciente. É difícil, pois todos os hospitais estão vivenciando a mesma realidade de lotação, há muita rejeição de aceite dos pacientes. Então, é uma vitória a cada conquista de vaga aceita. Já mandamos pacientes pra Belo Horizonte, Rio de Janeiro, Brasília e Goiânia.  

DeFato: No ano passado, Itabira aparentava ter a situação da pandemia sob controle. De repente, a segunda onda bateu de forma avassaladora na cidade. Em que momento a senhora sentiu que o quadro da cidade estava ficando crítico?

Sofia: A situação se tornou crítica quando começamos a receber pacientes em estágio avançado da doença, em grande quantidade, necessitando de leitos de internação, às vezes comum e, na maioria das vezes, de UTI. E, mais precisamente, quando esses pacientes passaram a ocupar todos os leitos de isolamento disponíveis no hospital. A ponto de não termos disponibilidade de vagas pra todos e começarmos a solicitar transferência.

DeFato: Qual é o comportamento do profissional de saúde, quando volta para casa, depois de uma longa jornada de trabalho? Vale ressaltar que, durante essa jornada, a pessoa fica exposta ao contágio pelo Coronavírus.

Sofia: Hoje, eu moro sozinha. Por isso, às vezes, relaxo um pouco com os cuidados. Mas vamos imaginar que eu morasse com os meus pais. O procedimento é retirar os sapatos e os deixarem fora de casa, ou colocá-los dentro de um saco plástico, ou caixa de papelão, para entrar em casa. Outra providência é tirar imediatamente a roupa e tomar um banho. É interessante ressaltar que, mesmo imunizados, nós podemos ser vetores (transmissores) do vírus. O vírus tem um determinado tempo de permanência nas roupas e nas superfícies. Com isso, a importância de sempre fazer a higienização das superfícies com álcool (em gel) ou água sanitária. E, das mãos, com água e sabão, e álcool.  

DeFato: E, em meio a todo esse terrível drama, qual foi o momento de maior impacto emocional para a senhora? Que imagem ficará retida na sua mente, pelo resto de sua vida?

Sofia: Um filho, após a mãe entrar pra ala de isolamento, sem poder acompanhá-la, me perguntando se seria o último contato que ele teria com ela. Uma filha me dizendo que já estava com o pai internado, intubado, e que a mãe seria transferida. Uma mãe, com o esposo intubado em Belo Horizonte e, com a filha intubada aqui, aguardando. Uma filha, que deixou o pai passando bem numa terça-feira, e voltou pra reconhecer o corpo uma semana após. Vejo pacientes da idade dos meus pais e do meu irmão sendo internados, sem comorbidades. Nesses momentos, eu só consigo pensar nos meus entes queridos. Por vezes, me pego imaginando receber um deles. Tenho muito medo e não consigo conter o choro. O momento do óbito, em que vários familiares passam pelo corredor do Hospital esperando uma boa notícia, e voltam inconsoláveis com a notícia do óbito. É desesperador. Não tem como não sentir a dor do outro. Tudo isso é como se a gente estivesse passando por um treinamento intenso, sabe? Acredito que estarei preparada pra lidar com qualquer situação, depois que vencermos isso.

DeFato: Itabira, sem dúvida, atravessa o momento mais dramático de toda a sua história. Nessa circunstância, que mensagem a senhora deixaria para a população?

Sofia: É um momento delicado para todos nós. Entendo que muitos estejam sofrendo as perdas, enquanto outros estão sofrendo por não poder trabalhar, e nem ter uma reserva para o sustento da família. Momento péssimo para a economia, como um todo. Apesar de tudo isso, o isolamento social ainda é a forma mais eficaz de se evitar a propagação do vírus. O melhor que podemos fazer, nesse momento, é obedecer ao isolamento e distanciamento social, além de redobrar todos os cuidados de higiene.