As aporrinhações sacais do cotidiano desses tempos modernos
Não perca o novo texto do colunista da DeFato, Fernando Silva
São demais as aporrinhações dessa vida, para quem já não tem a paciência de antigamente. Embora nem tanto tempo haja. Esse discurso é uma inspiração viniciana, admito.
Tarde de sábado. Sem nada a fazer, ligo institivamente a televisão. Dou de cara com Luciano Huck. O ex-futuro presidente da república apresentava uma atração com título convidativo: “Quem Quer Ser Um Milionário?” A resposta – de tão cretina – é óbvia, evidente e ululante. Ninguém anda por aí rasgando notas de real, mesmo as mais inexpressivas e velhas.
Todo o mundo quer (e pode) ficar milionário a qualquer momento. Há um milhão de atalhos para esse fim. Mas o caminho das índias é agulha num palheiro. Difícil achar. A rota da riqueza não passa pelo programa do marido de Angélica. É preciso uma força da deusa fortuna para ficar excessivamente rico no jogo televisivo. É impossível acertar todas as questões formuladas pela estrela global. São dez perguntas até atingir o tal milhão.
A épica trajetória de um sonhador começa de forma suave. As indagações iniciais são simplórias. Desse tipo: quem descobriu o Brasil? Há quatro alternativas à disposição. O pretenso felizardo precisa acertar a certa. Vejam as imagináveis e bisonhas opções:
1) – Aleijadinho
2) – Carlos Drummond de Andrade
3) -Clodovil
4) -Pedro Álvares Cabral
O esperançoso concorrente esfrega nervosamente as mãos e responde. Luciano faz pose, finge suspense, empina o proeminente nariz e sentencia: “certa a resposta”. O êxtase é generalizado. A plateia delira. O grau de dificuldade, porém, vai aumentando. A pessoa que supera cinco obstáculos (perguntas) dá de cara com a primeira casca de banana. E aí vai certeira pedrada no saco. Qual o nome do artilheiro do último campeonato nacional de futebol do Paquistão? Medite e escolha. A musiquinha de suspense cresce de intensidade. O cardápio “cultural” exibe os seguintes nomes para a “vítima” decidir:
1) – Mostafa Mohamed;
2) – Mohamed Sherif;
3) – Mohamed Elneny
4) – Neymar Júnior.
Nem com ajuda celestial o candidato decifra o enigma. Ele pode pedir socorro a parentes, ao auditório e até à torcida do galo. Não adianta. Mas – em algumas circunstâncias – um providencial chutômetro salva o dia do quase milionário. A próxima etapa do game show é letal. Algo mais ou menos assim aguarda o torturado: qual a cor da cueca que Jair Bolsonaro usou no dia da posse para presidente da república? Desse detalhe – com certeza – nem dona Michelle se lembraria.
Cá pra nós. Era muito mais fácil encarar o “Show do Milhão” de Sílvio Santos. Alguns mais atrevidos conseguiram faturar o prêmio máximo do homem do Baú. Até hoje, não tive notícias de algum milionário da lavra de Luciano Huck. O “Quem Quer Ser Um Milionário?” é raro exemplar de paga-micos. Todos os sábados aparece algum desatinado para pagar um desses peludos da nossa fauna.
Esse é apenas um exemplo boboca de aporrinhação. Há algumas outras besteiras do dia a dia muito mais demolidoras de neurônios. Um exemplo. A ridícula atitude de seguir orientações de um computador metido a humano (ou besta). Esse suplício é uma prática “natural” em atendimentos virtuais de bancos e telefônicas. E tomem dedadas. Pra falar com o presidente da empresa digite um, com a mulher dele digite dois, com a filha mais velha digite três, com a sogra digite quatro ou, com a mãe de todos, digite cinco. E não para por aí. Cada teclada produz mais cinco alternativas. Depois de meia hora de masturbação mental – o paciente cliente descobre que não resolveu absolutamente nada. Apenas perdeu tempo.
E tem também a papagaiada das letras embaralhadas e difusas. A estrovenga é uma barreira para navegantes de sites de órgãos públicos. O cara necessita desvendar um mistério para conseguir o acesso. Aí ele escreve qualquer coisa que imagina ver. E nada. Nunca acerta. E a imagem só piora. Fica mais confusa. Os caracteres vão se complicando. O artifício talvez seja uma ferramenta para avaliar o grau de lucidez (ou estupidez) do usuário. Essa imbecilidade é irmã univitelina da importunação fotográfica (ou passaporte) para a livre entrada em portais governamentais. Logo na página inicial vem a recomendação: selecione todas as imagens onde aparecem jabutis em cima de postes. É a idiotice elevada à enésima potência.
E só para finalizar esse lero-lero. Algum leitor idoso já fez a prova de vida pelo aplicativo do INSS? Simples, mas complexo. Nesse caso, o ex- trabalhador faz artísticas poses para a câmera do celular e segue a orientação de uma voz soturna. A macaquice tem vinte segundos para ser finalizada. E o velhinho vai fazendo papel de debiloide. E a voz do além segue orientando: vire o rosto para a direita. Agora, centralize o rosto. Agora, vire o rosto para a esquerda. Agora, dê um sorriso.
O vovô tenta superar essa embromação (enquadramento na tela) umas duzentas vezes e dificilmente vence o hercúleo desafio. O limite de tempo se esgota e o sujeito não dá conta de convencer que ainda não habita o interior de um maravilhoso caixão. Uma sugestão para a voz do além: que tal pedir ao ancião para mostrar o rígido dedo médio para o centro do visor? Essa seria a mais eficiente prova de vida. São demais as aporrinhações dessa existência. A falta de inspiração para um texto é uma delas.
PS: Os jogadores citados não são de times de futebol do Paquistão. Esses atletas vestem a camisa da seleção egípcia, menos o eterno malabarista tupiniquim, claro. Fiz isso só para ilustrar o exemplo. Desculpem-me pela aporrinhação.
Fernando Silva é jornalista e escreve sobre política em DeFato Online.
O conteúdo expresso é de total responsabilidade do colunista e não representa a opinião da DeFato.