Ou o Brasil acaba com o Centrão, ou o Centrão acaba com o Brasil
Ninguém consegue escapar da volúpia dessa gente. Direita, esquerda, centro ou extrema qualquer coisa. Tudo é jantar do Centrão.
O título acima é a contextualização de uma advertência do naturalista Auguste de Saint-Hilaire, um francês que se encantou com a natureza de Pindorama. O europeu percorreu o Sul e Sudeste do país e pesquisou a exuberante fauna / flora desse pedaço do planeta. A odisseia científica se passou no início do século XIX (1816 a 1822).
Nessa aventura tropical, Saint -Hilaire deparou com um pequeno e terrível ser: a formiga- cortadeira, popular saúva. A voracidade do bichinho espantou o galego. O inseto devorava tudo o que via pela frente. Nada escapava de sua gula insaciável. Muito menos a lavoura. O diagnóstico do gringo explorador foi implacável: “Se o Brasil não acabar com a saúva, a saúva acaba com o Brasil”. Esse espanto do aventureiro do velho mundo se transformou num eufemismo para situações embaraçosas. E, com efeito. O Brasil sempre foi consumido por gigantesco formigueiro moral.
Nesse ponto, batemos à porta do Centrão. E em que momento da história nacional pintou esse palavrão- com direito a rima e tudo mais? A resposta é fácil. A “Constituição Cidadã” de 1988 pariu o malvado rebento. A gestação do monstrengo obedeceu a um claro enredo. Os constituintes costuravam o tecido da futura carta magna. Progressistas e liberais eram os principais atores desse teatro institucional. O cenário mostrava um contraponto absolutamente natural numa democracia. Cada segmento ideológico puxava brasa para a sua respectiva sardinha.
A discussão avançava. Até que apareceu uma tropa de políticos em busca do protagonismo perdido. E esses senhores se mostraram extremamente pragmáticos. Nem tanto à esquerda, nem tanto à direita. E fiat lux. Entrou no palco (ou picadeiro) um bizarro centrismo. A coisa nasceu exuberante, embora inexpressiva. A quantidade de anões, porém, assustava. Era um bando muito grande, mas com baixa qualificação intelectual. E, de tão numeroso, o centrinho virou Centrão. E nunca mais a política brasileira foi a mesma.
No nascedouro, o ajuntamento de legisladores desse baixíssimo clero apenas pretendia introduzir pautas conservadoras nas páginas do livrinho sagrado da República. Mas não ficou apenas nisso. Um pouco à frente, esse pessoal percebeu que podia avançar muito mais. A paisagem oferecia possibilidades para atitudes mais ousadas. O bíceps da turma ficou suficientemente forte para derrubar qualquer governo, independente da orientação ideológica dos eventuais inquilinos do Palácio da Alvorada. E pior. Esses personagens sentiram o agradável aroma dos cofres públicos. E ponto. A nefasta percepção (o cheiro dos cofres) acabou com o equilibro entre esquerda e direita. Consequência lógica. O Centrão tornou-se crucial para a governabilidade.
O dissimulado centro virou um improvável (e tolerável) estado paralelo dentro do Estado Democrático de Direito. Uma aberração. Esse centro tacanho é formado por partidos sem padrão filosófico definido. O objetivo das agremiações desse espaço pecuniário é um só: manter votos e garantir as próximas eleições a qualquer custo. Tal artimanha desemboca num mesmo mar de lama: o vale tudo pela conquista do poder e sobrevivência eleitoral. Os praticantes desse escandaloso fisiologismo são as saúvas das emendas parlamentares, pois devoram impiedosamente os recursos da União. E ai do presidente que tentar impedir o livre acesso ao ninho da galinha dos ovos de ouro: impeachment nele!
Quase todos os atuais chefes do Executivo nacional ficaram refém do Centrão: Itamar Franco, Fernando Henrique, Lula, Temer, Bolsonaro e Lula de novo. Ninguém consegue escapar da volúpia dessa gente. Direita, esquerda, centro ou extrema qualquer coisa. Tudo é jantar do Centrão. Duas pessoas demasiadamente “corajosas” ousaram peitar o turmão: Fernando Collor e Dilma Rousseff. Adivinhe o destino de ambos? Acabaram escorraçados do Planalto Central. Como se vê, Saint-Hilaire nunca foi tão moderno: ou o Brasil acaba com o Centrão, ou Centrão acaba com o Brasil.
PS1: As viagens de Auguste de Saint- Hilaire pelo Sul e Sudeste do país produziram três vastos volumes sobre a fauna tupiniquim: “Flora Brasiliae e Meridionalis”. Vale a pena conferir.
PS2: Um formigueiro da saúva (formiga-cortadeira) consome uma tonelada de folhas por ano. A praga é o terror dos agricultores.
PS3: o ex-deputado paulista Roberto Cardoso Alves (1927/1996) – um dos fundadores do Centrão- usou indevidamente a oração de São Francisco de Assis para definir objetivamente o “modus operandi” da turma: “é dando que se recebe”. Acertou na mosca, apesar da heresia.
Fernando Silva é jornalista e escreve sobre política em DeFato Online.
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