A Vale e as nossas migalhas compensatórias de cada dia
A mineradora, ao longo dos tempos, encantou a sociedade com sorrateiras esmolas institucionais. Milhões e milhões sempre forraram os cofres públicos e engabelaram trouxas
Vamos ao ponto. Uma pergunta corriqueira permeia a história de Itabira, desde a década de 1970, época do apogeu da extração do minério de ferro na cidade: Itabira existiria sem a velha Cia Vale do Rio Doce (CVRD), atual Vale? Esse questionamento denota oportunismo e desconhecimento histórico. A jazida de Mato Dentro foi farejada por Percival Farquhar, em 1919. Farquhar era um megaempresário norte-americano. O gringo, então, atraiu a empresa inglesa “Brazilian Hematite” para explorar as monumentais reservas de hematita (e itabirito) desse “solo sacrossanto”.
Assim nasceu a multinacional “Itabira Iron Ore Company”. Em 1942, o governo Vargas estatizou o investimento internacional e criou a CVRD.
Na ocasião, o volume da riqueza natural itabirana era incomensurável. O poeta Carlos Drummond de Andrade enalteceu essa grandiosidade em sua crônica “Vila de Utopia”. “É curiosa a vila de Utopia, posta na vertente da montanha venerável e adormecida na fascinação do seu bilhão e 500 milhões de toneladas de minério com teor superior a 65% de ferro, que darão para abastecer quinhentos mundos durante quinhentos séculos”, conforme garantia o visconde de Serro Frio. “Os números que exprimem a quantidade de minério de Itabira”, confirma o professor Labouriau, “são tão grandes que se tornam inexpressivos”. Um espanto! Aí está a utopia temporal de um amontoado de ferro. Em menos de cem anos o gigantismo de cinco séculos literalmente virou pó.
Os colossais complexos do Cauê e Conceição se transformaram em horrendas crateras, densas nuvens de poeira e imensos brejos em forma de depósitos de rejeitos (ou criatórios de pernilongos). Uma paisagem lunática (bem lunar, para doidos). A Vale agora vai embora. O futuro socioeconômico do município é uma “incógnita na parede”. E a trágica situação se agrava ainda mais com o comovente menosprezo da mineradora na hora de dar no pé. A antiga “joia da coroa” evita discutir a incerta realidade do pós-extrativismo.
E Itabira existiria sem a Vale? Repito. Claro que sim. Talvez com um futuro até mais promissor . Veja bem. A “cidadezinha qualquer”, anterior à mega industrialização, ostentava consistente diversificação econômica. Havia duas fábricas de tecidos (Pedreira do Instituto e Gabiroba), várias forjas e pequenas produtoras de vinho e cachaça. A tal “Itabira Iron” pintou na praça e distribuiu ilusões. Quase todos os operários daqui venderam a sua força de trabalho (ou a alma) ao novo eldorado industrial. Consequência: as tradicionais iniciativas locais não suportaram a “desleal concorrência” e encerraram precocemente suas atividades, pois a mão de obra ficou escassa. Essa movimentação social e econômica marcou o início da nefasta monoeconomia. Uma realidade, hoje em dia, resta muito clara: Itabira existiria (e continuará existindo) sem o fuzuê da mineração. A Vale, porém, jamais sobreviveria sem o nutritivo alimento do subsolo itabirano.
A mineradora, ao longo dos tempos, encantou a sociedade com sorrateiras esmolas institucionais. Milhões e milhões sempre forraram os cofres públicos e engabelaram trouxas. Observem os números, eles não mentem jamais. No ano passado, a ex-estatal apresentou um lucro de R$39,940 bi. Um valor que, de tão elevado, não é perceptível para a maioria da população. Em 2023, a transnacional brasileira injetou R$255,640 mi nas burras da Prefeitura. Uma mixaria. Essa é a verba compensatória pelo cenário de Hiroshima e Nagasaki. Em outras palavras. A Compensação Financeira pela Exploração Mineral (CFEM) não compensa. Aparentemente é uma “fortuna”. Mas, no final das contas, trata-se de uma quantia irrelevante diante da irreversível catástrofe socioambiental e do faturamento exorbitante da “escavadora de buracos”. Uma mera migalha compensatória.
Fernando Silva é jornalista e escreve sobre política em DeFato Online.