Itabira anda irritantemente escandalosa
Cadê a suposta tranquilidade interiorana? Esse privilégio não existe mais na “cidadezinha qualquer”

Dois fenômenos parecem perenes em Itabira: a infernal barulhada noturna (ou diuturna) e os apagões da Cemig. “Um homem vai devagar, um cachorro vai devagar, um burro vai devagar, devagar as janelas olham. Eta vida besta, meu Deus”. Assim, as fatigadas retinas de Carlos Drummond de Andrade perceberam a bucólica Itabira de Mato Dentro, mergulhada entre gigantescas e quase intransponíveis montanhas de ferro. O poeta modernista testemunhou um panorama de meados da primeira metade do século passado. O remoto lugarejo, portanto, era sinônimo de paz, sossego, sombra e muita (mas muita) água fresca.
O tempo passa. De tão rápido, assimila metamorfoses físicas, morais e éticas. Nessa trajetória histórica, então, imensos e consistentes paradigmas ruíram como meros castelos de areia. Chegamos aqui. E, hoje, os novos tempos revelam uma cidade pulsante, “progressista”, exuberante e plena de vivacidade.
E cadê a suposta tranquilidade interiorana? Esse privilégio não existe mais na “cidadezinha qualquer”. De repente, sabe-se lá o porquê, uma variedade de ruídos ensurdecedores invadiu os quatro cantos. Itabira anda escandalosamente irritante. A zoeira intensa não começa de uma hora para outra. Muito menos está explícito o motivo da balbúrdia sonora: seria ação coletiva involuntária ou um modelo de protesto subliminar? A baderna ensurdecedora virou componente da paisagem. A barulhada acaba com a tranquilidade do “recesso sacrossanto de qualquer lar” — como gostavam de frisar os velhos sacerdotes das igrejas barrocas de Ouro Preto.
Itabira, de repente, foi invadida por decadentes motocicletas com escapamentos mais esburacados que solo lunar. A algazarra não tem limites. Um inferno. Por sinal, a moradia do tinhoso deve ser bem mais silenciosa. E, cá para nós, qual o prazer em trafegar com o cano de descarga em frangalhos? Nem Freud explica tão bizarro prazer, mas é coisa de louco.
E a aporrinhação não acaba nesse ponto. Há ainda a mórbida satisfação de “maníacos”, que desfilam os seus péssimos gostos musicais, a pleno volume, em velhos animais pré-históricos (automóveis) rastejantes. E a patuscada sonora não tem local, hora ou dia específico. O espalhafatoso prazer obedece involuntário revezamento. A coisa detona os tímpanos e a paciência pela manhã, tarde noite e madrugada adentro. O desatino inicia na região central, passa pela periferia e invade a zona rural. E não se pode esquecer dos escrachados botecos com cara de sofisticação. Estas modernas relés biroscas detonam a paciência de velhos, enfermos, pessoas autistas, crianças e animais. A arruaça nunca esteve tão onipresente nas ruas centrais e periferia. A desordem generalizada é democrática.
Itabira virou um território antissocial — sem lei e ordem. E Deus, caso ele haja, que tenha misericórdia dos pobres habitantes dessa barafunda. É muita falta de cidadania e respeito ao próximo. São sinais dos tempos.
P.S.1: Gostaria, então, de voltar para Ouro Preto. Mas, não dá. Lá não é muito diferente. Como diria padre Simões, a antiga Vila Rica virou a maior zona a céu aberto do planeta. E, caso fosse uma zona convencional, até daria para encarar.
P.S.2: Essa crônica foi publicada originalmente há três anos. E, como se vê, nada mudou. Continua tudo como dantes. Muito barulho noturno e contínuos apagões da Cemig. Data de publicação da barulhenta abobrinha: 22/2/2022. Isto é cabalístico (ou palíndromo?).
Sobre o colunista
Fernando Silva é jornalista e escreve sobre política em DeFato Online.
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