Para além do Maio Laranja
Os dados de abuso sexual na infância e adolescência são alarmantes e causam espanto e indignação a qualquer cidadão de bem
O mês de maio chegou e com ele uma das campanhas mais importantes no território nacional, que neste ano completa 25 anos: o Maio Laranja. Um mês dedicado ao combate ao abuso e à exploração sexual de crianças e adolescentes, sendo o dia 18 o emblema dessa luta. Esta data foi escolhida em memória à Araceli Cabrera Crespo, uma menina de apenas 8 anos que foi sequestrada, violentada e assassinada em 18 de maio de 1973, em Vitória (ES). Seu caso, impune até o dia de hoje, chocou o País e passou a simbolizar a luta por justiça e pela garantia dos direitos das crianças e adolescentes.
Os dados de abuso sexual na infância e adolescência são alarmantes e causam espanto e indignação a qualquer cidadão de bem. No Brasil foram 78.463 casos de estupro ao longo de 2024 e cerca de 60% dessas vítimas possuíam até 13 anos de idade. Nos últimos 15 anos, a proporção de crianças entre as vítimas de sequestro e exploração triplicou — e uma em cada três vítimas de tráfico no Brasil é menor de idade.
O abuso sexual nas redes também tem crescido assustadoramente. O Brasil figurou em quinto lugar na lista de países com mais denúncias de páginas que distribuíram conteúdos de abuso sexual infantil, com aumento de 70% em 2024, comparando-se com o ano anterior. E o pior é que os dados oficiais representam apenas 8,5% dos casos. Ou seja, são apenas a ponta do iceberg. A cultura do silêncio contribui para que a violência cresça, destruindo a infância de muitas crianças. E uma das estatísticas mais cruéis: mais de 80% dos abusos acontece dentro de casa ou com parentes e vizinhos da rede de confiança. Os adultos que deveriam ser referência e fonte de cuidado e proteção são os que mais violam a infância.
Diante disso, o movimento do Maio Laranja é uma resposta que visa mudar esse cenário. Ao longo do mês as escolas, serviços públicos, igrejas e outras entidades promovem a conscientização da importância de proteger as crianças. Eu mesma faço parte desse time que levanta a bandeira de forma especial no Maio Laranja e considero fundamental todo movimento social que dê evidência a essa realidade tão dramática e silenciosa à qual milhares de meninos e meninas do nosso país estão expostos diariamente. Mas tudo isso não é suficiente. Precisamos ir além de uma campanha anual…
Não dá para abrir a boca durante o mês de maio e permanecer calado o restante do ano.
Não dá para ficar indignado com a notícia de violência sexual e continuar normalizando a erotização infantil e a cultura do estupro no dia a dia.
Não dá para discursar a uma criança que o corpo dela é precioso e continuar a defender o uso dos castigos físicos como disciplina.
Não dá para dizer que a criança precisa pedir ajuda e continuar a educá-la a partir do medo e ameaças.
Não dá para ensinar às crianças que não devem dar atenção a estranhos quando elas não têm atenção dentro da própria casa.
Não dá para promover a luta contra o abuso sexual na infância e no outro dia pagar para uma criança se “divertir” em um trenzinho da alegria ao som de músicas de teor sexual.
Não dá para dizer para uma menina se proteger e ir numa loja comprar o cropped e o micro short que adultizam, sensualizam e expõem o seu corpo.
Não dá para postar textão no Maio Laranja e logo em seguida brincar com o filho da amiga dizendo que ele é o namoradinho da sua filha.
Não dá para dizer aos meninos que precisam cuidar das meninas e fazê-los crescer em meio a um machismo tóxico que bate palmas quando ele é o “pegador”.
Não dá para defender que a criança precisa ser criança e fazer uma festa “diferente” na boate para o filho, ao som de pornografia cantada e giros no poste de PoleDance.
Não dá para dizer que o abuso sexual é um absurdo e falar que não tem nada a ver a criança “jogar de ladinho” ou dançar “senta danada” para fazer um videozinho divertido do TikTok.
Não dá para dizer que defende a infância enquanto deixa suas crianças horas e horas largadas no celular.
Não dá para fazer discurso de proteção e deixar de denunciar as situações de violência à sua volta, achando que todos são responsáveis, menos você.
Não dá para chegar ao final desse texto e achar que é exagero e simplesmente desconsiderar o que o Estatuto da Criança e do Adolescente, o Código Penal e a Constituição Brasileira preconizam. Não é moralismo. Temos leis e ciência que nos dizem os que as crianças precisam para crescer de forma saudável e segura. Só que resolvemos ignorar a peculiaridade da infância – achando que é tudo normal – e quem está pagando a conta são as crianças. Chega dessa esquizofrenia coletiva. Ou protegemos as crianças de forma radical em todos os cenários ou os abusos infantis continuarão a crescer e ocupar as páginas de destaque nos jornais.
Muito mais do que uma campanha de peso no Maio Laranja, precisamos de uma mudança de mentalidade e transformação de cultura. E isso começa comigo e com você. Na minha e na sua casa. Espero que essa reflexão te ajude a se indignar com você mesmo, com as violências que você ainda normaliza e contribui para violar as crianças e os seus direitos.
Eu sei que esse não é o texto mais agradável que você irá ler hoje, mas talvez seja o mais necessário. Se fez sentido para você, compartilhe com mais alguém.
Sobre a colunista
Nina Magalhães é mãe de três, Terapeuta Ocupacional, mestre em Educação e Saúde e certificada como Educadora Parental e Consultora em Encorajamento. Palestrante e escritora, atua em diversos projetos em defesa da infância.