A boataria sobre impeachment revela o grande sonho de consumo dos brasileiros: o parlamentarismo
Termo, que esteve em desuso até a década de 80, se inseriu de vez no vocabulário do brasileiro
O cientista político Sérgio Abranches cunhou uma expressão peculiar para o famoso “toma lá, dá cá”. A prática (asquerosa para pessoas mais sensíveis) recebeu a alcunha “Presidencialismo de Coalizão”. A invenção retórica é obra-prima da literatura política nacional. “Presidencialismo de Coalizão” só existe aqui. É genuína jabuticaba. Afinal, o saboroso fruto só dá nessa região do planeta. A jabuticabeira é tão brasileira quanto o samba.
A teoria de Abranches desnuda uma realidade perturbadora. A conquista (e manutenção) da governabilidade passa por uma forma pouco ortodoxa de se fazer política. A “bruxaria” se resume numa troca de muambas institucionais entre o Executivo e Legislativo. A exótica “negociata” possibilita equilíbrio e harmonia no inter-relacionamento entre os dois poderes.
O procedimento é bastante claro: a máquina estatal libera verbas e cargos. Em contrapartida, os deputados aprovam projetos de interesse do “mandarinato” de ocasião. Essa atividade funciona assim nas três esferas do Estado: união, federação e municípios. O popular “é dando que se recebe” é uma cultura tipicamente brasileira. Essa filosofia franciscana (equivocadamente interpretada) é fonte de inspiração para a maioria dos homens públicos. “Pois, é dando que se recebe”, ensinava São Francisco de Assis.
O “Presidencialismo de Coalizão” é importante ferramenta de pacificação do sistema. Mas- em algumas circunstâncias- a tese pode virar colisão. Logo, uma faca de dois gumes. E, quando degringola definitivamente, a colisão recebe apelido assustador: impeachment.
O impedimento institucional era pouco conhecido. Ficou famoso a partir do final dos anos 1980. Mas o dispositivo já existia há muito tempo no ordenamento jurídico brasileiro. O veneno apenas estava em “stand by,” numa geladeira, (artigo 14 da Lei 1.079 de 1950) pronto para ser inoculado num instante oportuno.
O esquisito vocábulo (de origem inglesa) já foi apenas uma referência histórica para o inferno astral do ex-presidente americano Richard Nixon. Pouco se tocava no termo fatídico, por essas bandas. Mas, um dia qualquer, o palavrão (impeachment) apeou na pátria do “que é dando que se recebe”. E se deu muito bem aqui. De cara, a “coisa” fulminou duas estrelas cintilantes da constelação política tapuia: Fernando Collor e Dilma Rousseff. Ambos – tomados por arrogância incontida- bateram de frente com deputados e senadores (e, assim, a coalizão se fez colisão).
Note bem: o “Caçador de Marajás” e a “Gerentona” não caíram por crime de responsabilidade. Também não foram vítimas de golpes de estado. Mesmo porque, impeachment é apenas um remédio pragmático extremo (mais político e muito menos jurídico). A “solução” radical. Collor e Rousseff atiraram nos próprios pés. Os dois despencaram de podres. O “alagoano” foi atropelado por uma carroça modelo Fiat Elba. Já a petista estatelou- se de uma prosaica bicicleta (pedaladas fiscais).
E o brasileiro tomou gosto por essa balbúrdia toda. Então, o impeachment passou a ser uma panaceia para a cura de todos os males. Afinal, derrubar governantes se transformou em passatempo preferencial da patuleia. E tome impeachment para os mais banais dos pretextos, quanto mais pífios, melhor. Só há um jeito de saciar essa sede golpista da massa: implantando o parlamentarismo.
É simples. No sistema presidencialista, o presidente da república é chefe de governo (gestor da “coisa pública”) e chefe de estado (representa a nação no cenário internacional). É muito peso num ombro só, convenhamos.
No parlamentarismo, as responsabilidades são divididas entre dois atores: o presidente (ou monarca) trata das relações exteriores. O primeiro-ministro, por sua vez, cuida da política interna e da administração pública.
O presidente, sempre eleito por sufrágio universal, seleciona o primeiro-ministro, que forma o gabinete (ministério convencional). O primeiro ministro- que não foi escolhido por meio do voto popular- pode ser derrubado a qualquer instante. Para isso, basta uma simples moção de desconfiança do parlamento. A derrocada do “premier” acontece sem maiores transtornos sociais, econômicos ou políticos.
O esporte preferido dos moradores desse paraíso das bananas, portanto, é o lançamento de presidentes ao cesto (de lixo) da história. O parlamentarismo, com muita eficiência, saciaria essa sádica fantasia (alternância de poder fora de época) do imaginário popular tupiniquim.
Pra rir: em Itabira, se pudesse, o povo trocaria de prefeito anualmente.
Fernando Silva é jornalista e escreve sobre política em DeFato Online.
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