A Inconfidência Mineira produziu a primeira leva de delatores da história do Brasil

Instrumento de investigação já era utilizado antes mesmo de ganhar fama no país

A Inconfidência Mineira produziu a primeira leva de delatores da história do Brasil
Ilustração da morte de Tiradentes. Foto: Reprodução

A delação premiada foi a principal ferramenta do governo da pátria de Maquiavel na vitoriosa luta contra a máfia siciliana, uma organização criminosa com quase dois séculos de existência. A delação na versão brasileira virou uma rica fonte de pesquisa para profissionais da psicanálise, antropologia e sociologia. Freud, Darwin e Durkheim ficariam “orgulhosos” do Brasil.

 

A Lava Jato revelou impiedosamente o verdadeiro caráter de algumas das mais malevolentes figuras da sociedade dessa republiqueta de bananas. Isso é fato. Alguns de nossos homens públicos são moralmente fracotes e desonestos, uns grandes bananas (por isso vivemos na república dessa saborosa fruta). Basta o sujeito passar meia dúzia de dias na prisão para entregar o amigo, a mulher, a mãe, o pai, os filhos, o espírito santo e até o cachorro da família. A postura do ex-ministro Antonio Palocci Filho, por exemplo, foi para lá de constrangedora (para não dizer coisa pior).  

Mas, atenção. O dedo-durismo é um símbolo nacional há muito tempo. A trairagem é um componente marcante da cultura dessa terra de papagaios. E não é de hoje. O entrega-entrega começou no final do século XVIII. A Inconfidência Mineira, um dos momentos épicos da história do Brasil, está repleta de traições. Apenas o português Joaquim Silvério dos Reis recebeu a marca registrada “traidor” na historiografia oficial. Mas não foi ele o único merecedor desse adjetivo. 

Na hora do aperto, a maioria dos inconfidentes entregou a cabeça de Tiradentes numa bandeja de prata. Quase todo o mundo tremeu na frente inquisidor Luís Antônio Furtado de Mendonça, o Visconde de Barbacena, uma espécie de juiz Sérgio Moro da coroa lusitana. A lista de delatores da quase revolução liberal de Minas Gerais é formada por padres, médicos, advogados, militares, ricos empresários da mineração de ouro e poetas do arcadismo. Foi um salve-se quem puder. 

O tenente-coronel Francisco de Paula Freire de Andrade seria o chefe militar da conjuração. Ele, subcomandante dos Dragões de Minas, enviou correspondência ao visconde de Barbacena e alertou sobre os “rumores de uma conspiração”. O militar, portanto, foi um pré- Silvério dos Reis. 

O cirurgião Salvador Carvalho do Amaral Gurgel era o mais jovem dos inconfidentes. Ele tinha 26 anos de idade na época da tentativa de levante. O rapaz tremeu da cabeça aos pés durante os duros interrogatórios das autoridades portuguesas. No auge do desespero, Gurgel tachou Tiradentes de doido e bêbado. 

Tomás Antônio Gonzaga, Cláudio Manuel da Costa e Inácio José de Alvarenga Peixoto eram poetas da “Escola Arcádia Ultramarina de Vila Rica”. O português Gonzaga foi funcionário público da Coroa e ocupava o cargo de ouvidor. Quando a casa caiu, Dirceu (esse era o nome arcádico do poeta) fez-se de desentendido. Fingiu que nada daquilo era com ele.

Na ânsia de dissimular, resolveu desqualificar Tiradentes, a quem chamou de louco. E o ouvidor ainda teve tempo de cair no ridículo. Morrendo de medo, o noivo de Marília produziu um meloso poema em homenagem ao Visconde de Barbacena. Uma postura vexatória. 

Alvarenga Peixoto era um advogado carioca. Foi outro que pisou na bola. Pego em flagrante, resolveu bajular o vice-rei de Portugal com exagerados qualificativos. Para Alvarenga, dom Luís de Vasconcelos era a reencarnação de Vulcano (o deus romano do fogo). 

O advogado e fazendeiro Cláudio Manuel da Costa nasceu em Mariana, mas morava em Ouro Preto, num imponente casarão, bem próximo à igreja de São Francisco de Assis (obra-prima de Aleijadinho). O marianense já era um sexagenário na época da conjuração. Elegante pensador, Cláudio Manuel foi o mais exagerado dos delatores. De uma só vez, apontou o rígido indicador na direção de Tiradentes e Alvarenga Peixoto, o seu colega de memoráveis saraus poéticos. Mais tarde, arrependeu-se tragicamente de seu gesto infame e acabou se enforcando (ou foi enforcado) na prisão.  

A Inconfidência Mineira contava com expressivas figuras da elite da capitania de Minas Gerais, mas teve apenas um herói: o alferes Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes, único pé-rapado da turma toda.  

Apesar da fraqueza humana de alguns inconfidentes, não podemos confundir alhos com bugalhos. A inconfidência Mineira e o Petrolão não devem ser colocados num mesmo prato da história. Definitivamente, não. A conspiração de Tiradentes e Cia tinha o objetivo de libertar o Brasil da condição de colônia portuguesa. Uma atitude digna. Já o Petrolão é a mais sofisticada estrutura de rapinagem global. Um esquema repugnante. 

PS: Veja o poemeto com que Tomaz Antônio Gonzaga bajulou o Visconde de Barbacena, o seu algoz:

“Tu vences, Barbacena, aos mesmos Titos

nas sãs virtudes, que nos peitos abrigas:

não honras tão-somente a quem premeias,

honras a quem castigas.”

Fernando Silva é jornalista e escreve sobre política em DeFato Online.

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