Afinal, quem é que manda?
Imposições da Justiça, regras que se alteram com frequência e a ausência de um movimento articulado tornam ainda mais difícil o combate à pandemia da Covid-19
Quatro meses de pandemia em terras tupiniquins e a impressão que fica é que estamos nesta luta há anos. Desde que fomos apresentados ao novo coronavírus e que as medidas de combate passaram a ser adotadas no Brasil, um desenrolar de fatos tem colocado à prova toda a nossa resiliência. Um inimigo invisível que ceifa vidas, corrói a economia e testa diariamente a nossa saúde mental. Mas que é capaz também de desafiar a nossa organização enquanto nação fundamentada a partir de poderes independentes e esferas administrativas autônomas.
Desde que a covid-19 chegou ao Brasil, têm sido comuns os atropelos e a insegurança na tomada de decisões. Se já não bastasse todo o receio provocado pelo vírus, situações como imposições do Judiciário, regras extremamente voláteis e a ausência de um movimento articulado entre os poderes tornam ainda mais complicado o combate à pandemia no país. O cidadão não entende bem de onde vem as ordens e é inevitável aquela pergunta: afinal, quem é que manda?
Essa confusão teve início lá atrás, quando o presidente, governadores e prefeitos já mostravam que não pensavam do mesmo jeito a respeito da necessidade do isolamento social. Enquanto Bolsonaro dava declarações no sentido de manter a economia em funcionamento, os chefes dos estados preparavam medida restritivas. Ao mesmo tempo, os prefeitos já colocavam em prática os decretos de quarentena, fechando comércios e mandando as pessoas para as casas. O imbróglio chegou ao Supremo Tribunal Federal (STF), que, em abril, definiu que estados e municípios tinham, sim, autonomia para definir as próprias regras.
Mas, mesmo com essa decisão da principal corte do país, governadores e prefeitos continuaram batendo cabeça. Em Minas Gerais, por exemplo, o governador Romeu Zema só publicou o decreto com as regras para o isolamento depois que grande parte dos municípios já executavam seus protocolos locais. As cidades, então, passaram a conviver com duas legislações diferentes, sendo que uma nem sempre seguia à risca o que dizia a outra. Qual seguir?
O Governo de Minas lançou, no fim de março, a Deliberação 17, pensada e criada dentro do comitê de crise que define as ações contra a covid-19 no estado. O documento traz uma série de regras sobre o isolamento e o que pode ou não pode funcionar. Diversos municípios, como Itabira e João Monlevade, para citar dois da nossa região, optaram por seguir os preceitos dessa deliberação. Mas aí, em abril, veio o Minas Consciente, programa concebido para orientar os prefeitos na flexibilização de setores considerados não essenciais. O estado, então, passou a ter dois protocolos que dizem mais ou menos sobre o mesmo tema. Algumas cidades continuaram na Deliberação 17, outras poucas migraram para o Minas Consciente e a maioria não adotou nem um nem outro.
Em meio a essa confusão, o presidente continuava a engordar a lista de atividades essenciais, fazendo aumentar sobre prefeitos e governadores a pressão de empresários. Na outra ponta, o Ministério Público segue implacável na cobrança por medidas mais restritivas. Líderes mais próximos da população, e por isso mesmo mais expostos a protestos e cobranças, os prefeitos se dizem engessados, sobretudo depois de uma decisão do Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG) que obriga que as prefeituras optem pela adesão à Deliberação 17 ou ao Minas Consciente.
É o caso das academias, cujos proprietários pressionam pela reabertura dos estabelecimentos. Essa atividade está apontada como impedida de ser retomada na Deliberação 17 e os prefeitos que seguem essa norma estão impedidos de autorizar o funcionamento do setor.
Este cabo de guerra torna cada vez mais latente o temor de que as decisões descambem de vez para a judicialização. Exemplos já pipocam por diversas partes do estado. Foi assim em Belo Horizonte, onde o prefeito Alexandre Kailil viu um juiz lhe chamar de tirano e autorizar a reabertura de bares e restaurantes. A liminar caiu logo no dia seguinte, mas o desgaste já estava criado. Ora, o mesmo judiciário que deu ao prefeito a autonomia, lhe cassou esse poder e depois devolveu novamente. Afinal, quem é que manda?
O único que sai feliz dessa balbúrdia toda é o tal do coronavírus, que continua firme e forte, se alastrando, infectando, matando pessoas físicas e jurídicas. A covid-19 encontra terreno fértil no Brasil, um país que por si só é um grupo de risco gigantesco, cheio de comorbidades, asfixiado pelas suas próprias intrigas.
Gustavo Milânio é advogado e chefe de gabinete da Presidência do TCE/MG
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