Câmara de Itabira: vereadores apontam possível racismo estrutural em fala de Bernardo Rosa
Ao defender aprovação do Selo da Igualdade Étnico-Racial, vice-líder de governo escorrega em sua declaração. Rose Félix e Júlio do Combem dão aula sobre racismo estrutural
A reunião da Câmara Municipal de Itabira, realizada na última terça-feira (29), contou com momentos de constrangimento. Durante a votação em primeiro turno do projeto 07/2022, que prevê a criação do Programa Selo Equidade Étnico-Racial, o vice-líder de governo Bernardo de Souza Rosa (Avante) cometeu uma gafe ao defender a proposta: “em um comércio, em uma recepção por vezes tem uma loira dos olhos azuis ao invés de uma negra porque às vezes vai trazer mais atrativos, às vezes é muito mais bonito, mas isso não significa nada”, declarou. Rosilene Félix Guimarães (MDB) e José Júlio Rodrigues “do Combem” (PP) alertaram para uma possível situação de racismo estrutural no comentário e deram uma aula sobre o tema.
“As leis têm que ser para um caráter educacional e o Selo com relação à questão da discriminação e à valorização dos afrodescendentes, só sabe o que é discriminação quem a vive, quem não a vive pode ser que entenda o que é discriminação, mas quem a vive sabe o que é. A gente sabe muito claro, e não podemos ser hipócritas no sentido de que em um comércio, em uma recepção por vezes tem uma loira dos olhos azuis ao invés de uma negra porque às vezes vai trazer mais atrativos, às vezes é muito mais bonito, mas isso não significa nada”, disse Bernardo Rosa — a fala pode ser conferida a partir do minuto 39 do vídeo no final da matéria.
“Acho que a valorização nesse sentido, as pessoas tem que ter uma concepção diferente, essa é a realidade que a gente vive, isso é o cotidiano. E não pelo que tem, por credo, por religião, por tonalidade que as pessoas têm que ser valorizadas, elas têm que ser valorizadas pelo que são, pelo que representam. As pessoas têm que ter a consciência nesse sentido. O projeto de lei vem pra incentivar que o comércio, os empresários possam assimilar o que está sendo tratado nesse projeto e possam valorizar sim os afrodescendentes. E nós só somos o que somos por causa deles. Quem entende de história, quem sabe o que foi a colonização do Brasil entende muito bem que nós somos o que somos hoje por causa deles”, completou Bernardo Rosa.
Assim que o vice-líder de governo encerrou o seu discurso, Rose Félix pediu a palavra para alertar sobre declarações que podem até soar como defesa à causa negra, mas que acabam reforçando situações de diferenciação entre pessoas. A vereadora, ainda, destacou como esse tipo de situação exemplifica o racismo estrutural que existe em nossa sociedade.
“Eu vejo que ainda temos muito que avançar em relação ao tema, inclusive quebrando expressões que, por mais que estejam na defesa de uma causa, acabam sendo expressões pertencentes a uma estrutura de racismo estrutural, em que estereótipos são criados. Às vezes até na defesa dos nossos próprios interesses, de nós negros, pessoas que querem nos defender e, mesmo assim, nos colocam em situação de diferenciação. Eu vi agora a fala do vereador e, com todo respeito, dizer que uma pessoa loira e de olho azul é mais atrativo do que uma pessoa negra, eu não poderia deixar de dizer, apesar de entender a defesa [feita por Bernardo Rosa], não é oportuna [a fala] para este momento”, declarou Rose Félix.
Júlio do Combem discorreu sobre os desafios constantes de quebrar os padrões de belezas. Ele também destacou que certas declarações podem ser resultados de uma construção social, que acaba por reforçar elementos excludentes.
“Realmente a gente vive em uma sociedade em que a cada dia temos que quebrar mais ainda o que é o padrão de beleza. A gente vive em uma sociedade em que cada vez precisamos mostrar o que é beleza independentemente de raça, independentemente de gênero, independentemente de cor e independentemente de um monte de coisa. Eu entendo que o colega Bernardo Rosa foi infeliz na citação dos olhos azuis, mas às vezes isso acontece devido a forma como viemos sendo construídos dentro da sociedade. Às vezes nós nos pegamos, enquanto homens e mulheres pretos, falando que um cabelo bonito é um cabelo liso. Às vezes a gente se depara com situações assim e a cada vez temos que reforçar que a senhora é bonita do jeito e da forma que senhora é. E eu também sou muito bonito da forma como eu sou”, afirmou Júlio do Combem.
Retratação
Após Rose Félix e Júlio do Combem se posicionarem sobre as declarações, Bernardo Rosa voltou a pedir a palavra e fez uma retratação dizendo que as suas colocações traduzem situações que acontecem diariamente em nossa sociedade — e que, portanto, não refletem as suas opiniões.
“Só para esclarecer: não é um conceito meu de estereótipo. Muito pelo contrário. Eu preso muito o que vem no artigo 5º da Constituição Federal, de que todos são iguais perante a lei e todos têm que ser tratados igualmente. Eu só entendo que o próprio projeto de lei reafirma um conceito comum da sociedade. A gente pede cotas, porcentagem de contratação de afrodescendentes é por causa disso mesmo: as pessoas têm um conceito equivocado. Eu não estou falando um conceito meu, é uma realidade que a gente vê no dia a dia, crua e nua. Tanto que o próprio Júlio [do Combem] apresentou um projeto com percentual em concurso público para afrodescendentes. Então, estou falando que, infelizmente, é uma realidade que vivenciamos em nosso país e nós não podemos fechar os olhos por causa disso”, argumentou Bernardo Rosa.
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A proposta
O projeto de lei 07/2022, de autoria do prefeito Marco Antônio Lage (PSB), prevê a criação do Programa Selo Equidade Étnico-Racial com “objetivo de promover as ações afirmativas específicas da iniciativa privada, inclusive da rede conveniada, concessionária ou contratada do Poder Público Municipal, que estabeleça em suas empresas porcentagem mínima de cotas a afrodescendentes, disposta na lei 5.288, de 2021“.
Ainda conforme a proposta, “somente será concedido o Selo se atendida a porcentagem mínima de cotas a afrodescendentes, negras e negros, de 20% das vagas”.
A medida busca “incentivar iniciativa de empresas que busquem aplicar política de cotas raciais a seus funcionários e empregados”; “contribuir com a paz social, a liberdade e a igualdade”; “promover a equidade racial e a reparação histórica aos afrodescentes”, “fomentar um ambiente de tolerância e respeito às diferenças”, e “impulsionar o progresso da Agenda 2030, em busca do cumprimento dos objetivos de desenvolvimento sustentável”.