Doméstica de 82 anos é resgatada após 27 anos de trabalho escravo em SP
Após uma denúncia anônima, a vítima foi encontrada no endereço dos patrões, em condições precárias de acomodação e de trabalho
Uma mulher de 82 anos, negra e analfabeta, foi resgatada depois de permanecer 27 anos trabalhando para a mesma família em condições análogas à escravidão, em Ribeirão Preto, interior de São Paulo. A operação de resgate, realizada no final de outubro, foi divulgada na quarta-feira (7) depois que a Justiça determinou o bloqueio dos bens dos empregadores, um empresário e uma médica, no valor de R$ 815 mil.
Conforme o Ministério Público do Trabalho (MPT), a idosa permaneceu todo esse tempo sem receber salários e sem gozar de férias ou folgas. No inquérito civil que apura o caso, ficou demonstrado que a patroa enganava a vítima, dizendo estar “guardando o dinheiro” devido à empregada para juntar o suficiente para a compra de uma casa para ela.
A idosa foi resgatada depois que uma denúncia anônima mobilizou as equipes do MPT, do Ministério do Trabalho e Previdência Social e da Polícia Militar. A vítima foi encontrada no endereço dos patrões, em condições precárias de acomodação e de trabalho. Apesar da idade, a mulher fazia todos os trabalhos domésticos da casa.
Indagada sobre os salários, ela disse que “não conhecia dinheiro” e que os patrões enviavam cerca de R$ 100 todos os meses para seu irmão, que reside na cidade de Jardinópolis. Embora fosse beneficiária de uma pensão da Previdência Social devido à idade avançada, a empregada não tinha acesso ao cartão de saque, que ficava em posse da patroa. Os empregadores não apresentaram recibos ou qualquer prova de pagamentos feitos à doméstica.
Segundo a auditora fiscal do trabalho Jamile Freitas Virginio, a empregadora alegou que usava o dinheiro para comprar os gêneros de primeira necessidade destinados à empregada. “Salário, ela nunca recebeu. Ela tinha o grande sonho de ter uma recompensa por todos esses anos de trabalho e ela expressava essa crença muito forte de que receberia uma casa da empregadora”, disse.
A vítima contou que começou a trabalhar como doméstica ainda criança, na casa de outra família, sendo “cedida” para os atuais empregadores após o falecimento da antiga patroa. “Sem estudos, sem amigos ou relacionamentos amorosos, ela se submeteu a tal situação de trabalho por ser extremamente vulnerável. Mulher, negra, de origem humilde, analfabeta, ela mais uma vez evidencia a sobreposição de opressões e discriminações existentes em nossa sociedade”, afirmou a auditora.
Já o procurador Henrique Correia lamentou que tantos anos tenham se passado sem que a situação de exploração fosse descoberta pela comunidade que rodeava a família. “Além da ausência de remuneração, não havia controle de ponto, nem folgas semanais, sem qualquer controle do quanto recebia, com qual periodicidade, ou se recebia efetivamente algo.”
Fuga
Durante a inspeção, segundo o relatório, a empregadora tentou fugir da residência, levando a empregada, mas foi detida pela Polícia Militar. Ela ainda dificultou a identificação da trabalhadora, tentando impedir que entregasse aos fiscais os documentos pessoais. Em diversos momentos da inspeção, a empregada demonstrou submissão, atendendo às ordens da mulher e acenando a cabeça em concordância com o que ela dizia.
Mesmo com a idade avançada, a doméstica disse que continuaria trabalhando “até ganhar uma casinha”. Conforme Jamile, nos casos de resgate de trabalho escravo doméstico, em geral a pessoa começou a trabalhar muito cedo e se sente parte da família que a emprega sem pagar seus direitos.
“Essa relação acaba se misturando com os sentimentos e cria-se ali uma relação de afeto constituída com base na desigualdade, em que um parece ser quem provê tudo ao outro, que é necessitado, quando na verdade, existe uma prestação de serviços que deveria ser remunerada de maneira correta”, disse.
A partir do resgate por condições análogas à escravidão pelos auditores fiscais do Ministério do Trabalho, a doméstica tem direito ao seguro-desemprego e às verbas rescisórias. A vítima foi encaminhada à Defensoria Pública da União (DPU). Os empregadores podem ser incluídos na “lista suja” do trabalho escravo. “Pensa-se que o trabalho escravo é algo que acontece nos rincões isolados do País, mas no Estado mais rico da nação isso também acontece, e dentro das nossas casas. Muitas vezes, sob olhares omissos e contemplativos, que concordam com essa ‘normalidade’ do trabalho escravo doméstico”, disse a auditora.
De acordo com o MPT, a doméstica resgatada foi levada para a casa do irmão, em Jardinópolis. Os familiares que a acolheram alegaram desconhecer a real situação do trabalho dela. A idosa aceitou atendimento psicológico e será acompanhada por um terapeuta. Os nomes dos empregadores não foram divulgados, já que os processos relativos ao caso tramitam em sigilo. A falta de identificação impediu que a reportagem conseguisse contato com a defesa deles.
Com Estadão Conteúdo