Kiev: onde a história se repete
Leia o novo texto do jornalista e colunista da DeFato, Fernando Silva
A conversa começa com uma máxima de Karl Marx — o “ídolo maior” do presidente Jair Bolsonaro (PL): “a história se repete, a primeira vez como tragédia e a segunda como farsa”.
É fácil a comprovação prática desse aforismo do filósofo alemão. Basta botar um pé no passado. Em frente. O austro-alemão Adolf Hitler não foi um bom aluno de história. Provavelmente, levou bomba nessa matéria das reminiscências humanas. É necessário retornar um pouco no tempo para demonstrar que Hitler não era um estudante exemplar.
Em 1812, Napoleão Bonaparte traiu o czar Alexandre 1 e invadiu a Rússia com uma multidão de 600 mil soldados. O exército russo — além de muito menor e pouco preparado — era comandado pelo general Mikhail Kutuzov, um sujeito ligeiramente palerma. A soma de aparente patetice com involuntário auxílio da natureza foi fatal para os invasores: as tropas francesas levaram uma das mais humilhantes sovas de todos os tempos.
O resultado final da aventura napoleônica, porém, era previsível. O fracasso estava escrito nas estrelas. Bastava olhar para o céu. Como assim? Os combatentes russos tinham ínfimo poder de reação. Não haveria batalhas. O mandarim maior dos Alpes apenas faria turismo em Moscou. Mas, o lendário imperador da França cometeu um pecado mortal. Bonaparte tomou a decisão mais absurda da sua vida, algo impensável para um grande estrategista. Ele ordenou a invasão do império russo em pleno inverno.
O final do drama todo o mundo conhece: o magnífico aparelhamento bélico francês acabou congelado nas terras do czar. Um desastre. Apenas 20 mil soldados conseguiram retornar para casa. O maior guerreiro do planeta (na opinião de alguns fanáticos) foi fragorosamente aniquilado pela neve intensa. O “general inverno” — que literalmente colocou o exército francês num freezer — foi o grande herói da campanha épica. E preste a atenção para essa recomendação: jamais tente invadir a Rússia no inverno.
Um século depois, o psicopata Adolf Hitler teve a mesma ousadia de Bonaparte. O nazista descumpriu o acordo de “não agressão” firmado com o “czar vermelho” — Josef Stalin — e partiu com tudo em direção a Moscou. Não considerou a navalhada napoleônica e resolveu destruir os comunistas em pleno inverno. Repito: em pleno inverno. Para o bem da humanidade, o Führer imitou a imbecilidade do ditador da França. Consequência: o armamento nazista- a mais sofisticada máquina de guerra da história, até então- se transformou num sorvete. Ali foi o começo do fim da Segunda Guerra Mundial. O the end da aventura hitlerista na Terra. Os alemães foram impiedosamente escorraçados pelo já famoso “general inverno”.
Pit stop. É hora de botar os pés em meados do século 20. E aqui, agora, comprova-se, mais uma vez, a teoria do criador do Socialismo Científico: a história sempre se repete como tragédia, após uma farsa. As cortinas agora abrem-se na Ásia.
Em novembro de 1955, começou a guerra entre o comunista Vietnã do Norte e o capitalista Vietnã do Sul. O conflito ilustrava a polarização da Guerra Fria: o socialismo soviético contra o capitalismo americano. E o governo de Washington arrumou um pífio pretexto para entrar numa encrenca alheia, em 1965. O fictício incidente do Golfo de Tonquim foi a gota d´água. Os generais norte-americanos planejaram uma ação rápida.
Afinal, o poderosíssimo Tio Sam enfrentaria um bando de maltrapilhos do Vietnã do Norte. Mas, não. Não seria uma luta convencional. De um lado, a terrível máquina mortífera dos EUA. Do outro, uma improvisada tropa de ferozes guerrilheiros. E deu no que deu. Depois de uma sucessão de vexames, o presidente Richard Nixon tirou o time de campo, em 1975. Cerca de oito milhões de asiáticos morreram no conflito. A irresponsabilidade (e incompetência) custou a vida de 58 mil americanos.
E chegamos ao mundo moderno, ainda no limiar desse terceiro milênio. Nessa paisagem, o russo Vladimir Putin reprisa o filme vietnamita. Num piscar de olhos, a reencarnação dos velhos czares determinou a invasão da Ucrânia. “Será uma rápida intervenção”, previu o chefe das forças armadas da Rússia. E, mais uma vez, a arrogância venceu a prudência.
O imaginário do Kremlin tinha motivação simbólica para a agressão a uma nação soberana. Wladimir- um antigo milico da KGB — não se cansa de afirmar para a plateia: “russos e ucranianos são farinhas de um mesmo saco”. Um povo só. Nada a ver. São totalmente diferentes. Os conterrâneos de Dostoiévsky sempre conviveram com os piores exemplares de ditaduras. Idolatraram — durante 300 anos- a dinastia dos Romanov, a fábrica de czares. Depois, sofreram com a ditadura “comunista” por 74 anos. Nos dias de hoje, toleram candidamente duas décadas de poder do autocrata Wladimir Putin.
E aqui está o contraponto. Nessas duas décadas de reinado “putiniano”, houve quatro eleições para presidente da República na Ucrânia. Os ucranianos são naturalmente democratas e não se submetem. Essa faceta deles é uma tradição. Então, a guerra será longa. Não tem prazo de validade. Os adversários de Moscou são ossos duros de roer. O Kremlin tem tudo para repetir o fiasco da Casa Branca na pancadaria vietnamita.
P.S.: o romance “Guerra e Paz”— obra prima de Liev Tolstói- tem como pano de fundo a invasão do exército de Napoleão Bonaparte à Rússia. A narrativa gira em torno da heroica e comovente resistência do povo do país do Leste Europeu (com a ajuda do gelo, claro). Vale a pena reler.