”Mais que pró-Palestina, o Brasil é pró-Paz”: Jamil Chade comenta sobre a atuação do governo brasileiro na guerra
Jamil Chade é correspondente na Europa há duas décadas e tem seu escritório na sede da ONU em Genebra. O jornalista concedeu entrevista exclusiva à DeFato
Nesta semana, durante a edição do Festival Literário Internacional de Itabira – Flitabira, Jamil Chade, renomado jornalista brasileiro que há mais de 20 anos atua em veículos internacionais (como BBC, CNN, Al Jazeera, The Guardian e grandes portais nacionais), esteve em Itabira e conversou com a DeFato. Em um bate papo exclusivo, Jamil abordou a escalada do conflito entre Israel e Palestina, os interesses por trás da guerra e a atuação do governo brasileiro frente à questão. Para o jornalista, o período em que o país esteve presidindo o Conselho de Segurança das Nações Unidas foi um reposicionamento político internacional, reconhecido por vários países.
Antes de seguir viagem para o Pará, onde visita a tribo Xingu, Jamil confidenciou que ficou maravilhado com a hospitalidade e carinho recebido pelos itabiranos: ‘‘É muito poderoso esse sentimento de acolhido. E talvez não seja uma coisa só de Itabira, tem uma coisa mineira de receber, de abrir as portas. Já tinha virado duas noites de avião e trabalho, daí pensei: ‘‘vou chegar moído, exausto’’. Só que a energia foi tão positiva, tão boa, que ganhei vida’’.
Quem é Jamil Chade?
Jamil Chade é correspondente na Europa há duas décadas e tem seu escritório na sede da ONU em Genebra. Com passagens por mais de 70 países, Chade vive na Suíça desde 2000. É autor de sete livros, três dos quais foram finalistas do Prêmio Jabuti. Entre os prêmios recebidos, o jornalista foi eleito duas vezes como o melhor correspondente brasileiro no exterior pela entidade Comunique-se. Chade é embaixador do Instituto Adus, conselheiro do Instituto Vladimir Herzog e membro da comissão de Liberdade de Expressão da OAB-SP.
Diante dos conflitos atuais vividos entre Israel e Palestina, o III Flitabira convidou o jornalista Jamil Chade, que já integrava a programação do Festival, para uma mesa extraordinária. Como conta o jornalista, “a guerra não começou no dia 7 de outubro de 2023 – ela começou há mais de dois mil anos”. Ele ainda ressalta que, quando há vítimas em algum conflito, sempre há algum lado errado, e ainda completa com uma colocação impactante: “no mundo atual, falar de paz é um ato revolucionário”.
O que há por trás da guerra?
Segundo Jamil Chade, apesar de muita gente desconhecer, existe uma explicação muito clara para o que está acontecendo: Israel vinha realizando uma tentativa de normalizar relações com outros países do mundo árabe, principalmente a Arábia Saudita. Para o jornalista, ao disparar foguetes em direção ao território israelense, o Hamas mandou um recado claro: isso não acontecerá ‘‘enquanto as reivindicações do movimento não forem atendidas’’.
Jamil explica que, para muitos, essa normalização acarretaria o fim da causa palestina: ‘‘Os Emirados Árabes fecharam um acordo com Israel há alguns anos e não exigiram nada sobre a Palestina. Marrocos normalizou a relação com Israel e não fez nenhuma exigência sobre a Palestina. O Sudão fez a mesma coisa e não fez nenhuma exigência sobre a Palestina. Se você tem uma normalização de Israel, você tem o esvaziamento da questão palestina. E o que faz, então, um grupo extremista, com ato terrorista e absolutamente condenável, é dizer: não vamos aceitar essa normalização’’.
O jornalista completa que o Hamas não orquestrou o ataque sozinho, e agiu junto com outros grupos e apoiados pelo Irã. Ao ser questionado sobre como a Liga Árabe avalia a escalada do conflito, Chade afirma que o momento é um pouco ‘‘curioso’’, pois há uma repercussão interna em cada país específico.
‘‘A Liga Árabe, por muito tempo, tinha abandonado a questão palestina. Não estava mais nem na agenda prioritária da Liga Árabe. E isso [os novos conflitos] obrigou a Liga Árabe a voltar a colocar o tema na sua agenda. Hoje, os regimes árabes são obrigados a reconsiderar esse assunto. Inclusive porque as ‘‘ruas’’ nos diferentes países árabes, junto da sociedade civil, estão questionando os seus próprios líderes.’’
Chade também comentou sobre a cobertura da imprensa nacional em relação ao conflito e foi categórico ao dizer que é urgente encerrar as narrativas e histórias únicas, pois isso é muito perigoso.
Mais que pró-Palestina, o Brasil é pró-Paz
Jamil Chade explica que, o governo brasileiro tem a sua posição tradicional, que foi mantida inclusive durante o regime militar e após a redemocratização. Na visão do Itamaraty ‘‘só haverá uma estabilidade quando houver dois estados’’.
‘‘Só vai haver garantia de paz quando houver a garantia de que esses dois estados existem, e que haja a garantia de que as fronteiras entre esses dois estados serão reconhecidas pelos dois e pela comunidade internacional. O que quer dizer isso? Que não vai haver outro país dizendo que não reconhece um ou outro Estado. É preciso que haja o reconhecimento mútuo do direito a existir. Essa é a posição do Brasil. Agora, o Brasil é pró-Palestina? Muito mais que pró-Palestina, o Brasil é pró-paz.’’
Novamente reiterando, Jamil reafirma que o Hamas cometeu um crime ao vitimar mais de 1.400 vítimas, em sua maioria, civis e não existem dúvidas sobre isso. No entanto, para ele, a resposta de Israel é ‘‘desproporcional e está matando mais de 60% de mulheres e crianças entre as vítimas’’.
Brasil volta a ter reconhecimento político internacional
Chade também foi questionado sobre a atuação do Brasil no período em que esteve à frente do Conselho de Segurança das Nações Unidas. A DeFato o perguntou quais foram as bases de atuação do país e se ele sai ‘‘fortalecido’’ politicamente após a presidência. Segundo o jornalista, o Itamaraty buscou promover um protagonismo internacional para que a mensagem brasileira fosse passada. Além disso, o governo brasileiro tentou lidar com o conflito para atender dois outros aspectos.
Um deles foi a tentativa de criar algum tipo de cessar-fogo, trégua, ou pausa humanitária. No entanto, o texto proposto pelo Brasil foi vetado pelos Estados Unidos, membro permanente do Conselho. Doze países foram favoráveis à proposta, entre eles China, França e Emirados Árabes Unidos.
Para Chade, mesmo com o veto, isso não significa um fracasso ao país, já que desde 2016 nenhuma resolução sobre Israel e Palestina é aprovada no Conselho de Segurança. ‘‘Pode até se dizer que é um fracasso: um fracasso do Brasil, do CSNU e todos os outros países’’.
Após sair da presidência e encaminhar para o fim do seu ciclo no Conselho, a avaliação é de que o Brasil voltou a ter voz ouvida:
‘‘Eu acompanhei vários discursos de países reconhecendo os esforços do Brasil nesse sentido. O Brasil sai pelo menos reposicionado no mundo. Fortalecido, eu acho que ninguém numa guerra saí dessa forma, esse é o drama. Mas o Brasil sai pelo menos com um reposicionamento internacional.’’
O que lhe motiva no jornalismo?
”Eu acho que seria muita pretensão a gente achar que, na nossa profissão, a gente muda o mundo. Não, não é assim. Mas a gente tem que ter a vontade de querer mudar. A gente tem que acreditar que se todos nós fizermos alguma parte dessa história, alguma coisa diferente vai sair desse esforço comum. Mas, insisto, não é que eu posso mudar o mundo. Não. Mas eu preciso ir trabalhar todos os dias pensando na capacidade que a informação tem de esclarecer. E a palavra, o termo que eu uso sempre é de insurreição das mentes. Eu quero que o leitor, quando leia uma matéria, pense: Uau, não sabia desse dado, nunca tinha pensado essa história dessa forma. Eu quero que o leitor termine uma coluna minha não pensando diferente, mas questionando.”