O comunismo utópico foi a grande inspiração para ditaduras de direita e esquerda
Não há comunismo em lugar algum. O sistema que caiu na boca da população nunca passou de mera utopia. Quem comenta o assunto é o jornalista Fernando Silva, em sua nova crônica.
O termo utopia tem significado singelo: é simplesmente lugar nenhum, coisa alguma. Mera fantasia do imaginário humano. É algo que não há. Duas utopias icônicas ilustram o pensamento político: a polis ideal de Platão e o comunismo marxista.
Para o discípulo de Sócrates, o melhor governo seria formado por um pequeno grupo de sábios. A sociedade platônica, então, teria um perfil aristocrático. Os futuros dirigentes (sábios) iniciariam os seus estudos para o exercício do poder a partir de nove anos de idade. E percorreriam um longo caminho até os 50.
Nessa faixa etária extrema, esses cidadãos – também chamados magistrados – estariam aptos para o exercício do poder em Esparta, cidade-estado, terra de Platão. Esse extenso desenvolvimento intelectual e físico (as pessoas também se preparariam para a guerra e defesa da polis) seria bancado integralmente pelas instituições sociais (ainda não existia a configuração do Estado, como conhecemos hoje).
Platão não apreciava a democracia (o governo de muitos). O espartano afirmava que a isonomia (a livre participação de todas as classes sociais no processo político) era um fator facilitador da demagogia. A mistura de todas as pessoas – com direitos semelhantes – abriria espaço para que um espertalhão com retórica oportunista atropelasse o bem comum. Para os antigos gregos, o fim único da política era o bem comum.
Essa repulsa de Platão à participação popular universal tem uma explicação: a condenação de Sócrates. O pai da filosofia foi julgado em uma assembleia da Ágora – o espaço público onde se deliberavam os assuntos de interesse da coletividade. O velho filósofo foi punido por dois delitos: ateísmo e corrupção da juventude. Pura vingança de inimigos vários. Cerca de 500 pessoas votaram. Uma diferença de apenas 30 votos definiu o destino fatídico de Sócrates – que condenado à morte – foi obrigado a ingerir um veneno à base de cicuta (uma erva altamente tóxica). A República de Platão não passou de uma utopia. Não teria mínima possiblidade de funcionamento prático.
Já o pensamento de Karl Marx é uma consequência direta da consolidação da Revolução Industrial, em meados do século 19. Naquele momento histórico, o capitalismo iniciava a sua longa e contraditória hegemonia no planeta. O sistema capitalista escancarou de vez a eterna luta de classes. Essa é a conclusão de Marx e Friedrich Engels. Na divulgação do Manifesto do Partido Comunista, em 1848, os dois ideólogos concluíram que a controvérsia das classes era o mais perverso fenômeno social de todos os tempos. No passado medieval, o embate era entre servos e senhores feudais. Depois, prevaleceu o confronto de escravos contra seus “donos”. E – no advento da Revolução Industrial – duas personagens estabeleceram a contradição de forma incisiva no sistema socioeconômico: os proprietários dos meios de produção (burgueses) e os detentores da força de trabalho (operários das fábricas ou proletariado).
Para Marx, a sociedade só alcançaria a justiça plena com o fim da luta de classes e extinção da propriedade privada (“a principal causa da desigualdade social”). Na visão socialista, essa transformação só aconteceria por meio de uma revolução radical dos trabalhadores. Essa insurreição acabaria com a hegemonia da burguesia. No momento seguinte, começaria a ditatura do proletariado. Na etapa final do processo, aconteceria o triunfo do comunismo com duas consequências imediatas: a destruição do estado nacional e o fim da divisão de classes.
A Revolução Russa de 1917 previa a implantação do comunismo no país. A geringonça ideológica, porém, jamais saiu do papel. Mesmo porque, a nação europeia foi o local mais improvável para a implementação do ideal marxista. Ali, a industrialização era incipiente. Praticamente não existia. A Rússia era predominantemente agrária e atrasada. O seu modelo socioeconômico praticamente feudal. Então, o líder revolucionário Vladimir Lenin adaptou a teoria socialista ao ambiente rural. Lenin constatou que também os “mujiques” (camponeses) sofriam uma espécie de exploração capitalista.
Mas a situação descambou de vez quando o genocida Josef Stalin assumiu o poder, após a morte do mentor da Revolução. Essa alternância praticamente jogou por terra o sonho comunista. Stalin era um mero psicopata assassino. Desconfiava de tudo e todos, naturalmente via fantasmas em plena luz do dia. Perseguiu e deportou supostos inimigos para campos de trabalhos forçados (os gulags). E mais. As impositivas reformas “modernizantes” levaram milhares de inocentes à morte. A escassez de alimentos ocasionou a mortandade de milhões de pessoas na Ucrânia, uma das Repúblicas Socialistas Soviéticas (episódio historicamente conhecido por Holodomor).
O regime stalinista, portanto, nada tinha a ver com a filosofia marxista. O fantasioso (e trágico) comunismo soviético durou longos 74 anos. Durante esse período, a Rússia manteve-se como um estado forte, centralizador e excessivamente burocrático. Não houve ditatura do proletariado. Pelo contrário. Os trabalhadores foram colocados à margem do sistema. Não existia igualdade social na antiga União Soviética, mas o Kremlin abrigava uma casta de privilegiados – a “corte do czar vermelho”.
Então – na realidade – o comunismo jamais existiu. Esse conceito ideológico, ao longo do século passado, foi apenas pretexto para justificar ditaduras de extrema esquerda e extrema direita. A ultradireita (como o nazismo alemão e o fascismo italiano) usou o totalitarismo para combater uma tal disseminação comunista. A esquerda radical, por sua vez, empregou o governo autoritário para “impedir a exploração dos trabalhadores pela burguesia”. O comunismo, então, foi ferramenta de legitimação das ditaduras de Adolf Hitler, Benito Mussolini, Josef Stalin, Mao Tsé – Tung e muitos outros tiranos mundo afora. A elaboração filosófica de Karl Marx e Friedrich Engels, portanto, não passou de perigosa utopia.
PS: Um minuto. Apenas. E tudo jamais será como antes foi. Já é história.
Fernando Silva é jornalista e escreve sobre política em DeFato Online.
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