O dia em que o bispo Dom Mário Gurgel quase foi sequestrado

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O dia em que o bispo Dom Mário Gurgel quase foi sequestrado
Foto: Divulgação / Diocese de Itabira

Ano de 1992. O mês de setembro começou com muita tensão em Itabira.  Em outubro, haveria eleições para prefeito e vereadores. A temperatura política da cidade subiu consideravelmente nos últimos dias. Um número recorde de seis candidatos disputaria a Prefeitura: Jackson Tavares, Olímpio Pires Guerra (o Li), Milton Bueno, Jota Santos, José Maurício Silva e Cácio Guerra, o candidato do prefeito Luiz Menezes.

Esse era o cenário de uma amena noite de sábado, em plena primavera. A região da catedral Nossa Senhora do Rosário estava lotada de automóveis. Uma multidão aguardava o início da missa das 19 horas.    

O bispo Dom Mário Gurgel gostava de política. E não jogava para perder. O religioso teve influência decisiva na vitória do médico Jairo Magalhães Alves, no pleito majoritário de 1976. Uma manobra, pouco santa, na última hora, provocou a derrota do candidato padre Joaquim Santana de Castro, o pároco da igreja da Saúde.  

Jesus Teixeira Gurgel nasceu em Iguatu, um pequeno município do Ceará. Em 1971, assumiu a prelazia depois da estranha renúncia de Dom Marcos Antônio Noronha, o primeiro titular da Diocese de Itabira e Coronel Fabriciano, que foi criada em 1965. 

Gurgel desembarcou na terra de Carlos Drummond de Andrade numa noite de forte chuva. De cara, o nordestino deparou com grave crise no clero itabirano. Ninguém o aguardava na rodoviária. Essa desfeita foi um indicador de que a situação não estava nada boa. O “enviado de Roma” perambulou solitariamente pelas ruas até encontrar a casa do monsenhor José Lopes dos Santos, o popular Zé Lopão.

Duas décadas se passaram. Os fiéis aguardavam impacientemente. O interior da catedral estava repleto. Poucas pessoas, porém, perceberam quando um Chevette branco entrou sorrateiramente no adro. Cinco homens (na faixa de 17 a 25 anos) ocupavam o interior do veículo. Com muita perícia, o carro foi estacionado estrategicamente numa das laterais do templo. 

Um ano antes, Dom Mário se envolvera numa das maiores polêmicas da história do catolicismo itabirano. Foi um drama. Nas noites de domingos, o ultraconservador padre Francisco Trombé celebrava missa na Igrejinha do Rosário. Esse sacerdote – muito admirado por significativa parcela da população – vivia no Santuário do Caraça, que pertence à Arquidiocese de Mariana. Durante uma celebração, Trombé fez duras críticas à linha teológica da Diocese de Itabira. 

Dom Mário acusou o golpe e tomou uma providência radical: proibiu o reverendo do Caraça de fazer celebrações no município. Essa atitude provocou uma forte comoção popular. Itabira ficou literalmente dividida.  Alguns políticos se envolveram na pendenga. Cácio Guerra- então presidente da Câmara de Vereadores-defendeu Trombé com veemência. De nada adiantaram os protestos.  Dom Mário não recuou de sua decisão.  

Por volta das 19h30, o bispo finalmente apareceu na rua de acesso à catedral. Ele vestia um paletó cinza, camisa branca e calças pretas. Um crucifixo de prata adornava seu peito.  Bastante magro, ligeiramente encurvado, caminhava lentamente em companhia de um pequeno grupo de fiéis.  No muro superior da igreja, bem próximo ao palácio episcopal, quatro membros do Partido dos Trabalhadores (PT) observavam atentamente o ambiente.  

Dom Mário aproximou-se da frente da catedral. Os ocupantes do Chevette gesticularam nervosamente. Esses indivíduos estavam ali para uma missão muito ousada: sequestrar o principal líder religioso da região. O motivo do ato extremo tinha uma explicação: Dom Mário Gurgel estava interferindo claramente no processo eleitoral. As ações do cearense provocaram uma radical alteração nas pesquisas de opinião. O primeiro colocado na intenção de votos caíra drasticamente para a terceira posição, em pouco tempo. 

Os aprendizes de bandido receberam uma orientação absurda: manter Dom Mário em cativeiro durante dois dias. Era tempo necessário e suficiente para o xará de Jesus Cristo conservar a boca fechada. Aguardava-se para os próximos dias uma ação decisiva do “representante de Deus na Terra”: o bispo faria um pronunciamento que definiria de vez o resultado das urnas. E essa iniciativa deveria ser abortada. 

Os futuros sequestradores acompanhavam a rotina do religioso há duas semanas. Eles precisavam ver Dom Mário de perto.  Primeiro procuraram pelo bispo no casarão do padre Zé Lopão, que informou: “meus caros, vocês vieram no lugar errado. Dom Mário mora no outro lado da rua”. Os rapazes inventaram um atraente argumento e foram recebidos na residência diocesana: “necessitavam uma bênção episcopal”, era a esfarrapada desculpa. O objetivo desse encontro, no entanto, foi observar a fisionomia do prelado nordestino. O dirigente da Igreja foi generoso. Deu de presente, a cada um dos moços, um pequeno crucifixo de madeira. 

O momento fatídico se aproximava. Havia inquietação em dois pontos estratégicos: dentro do carro branco e no muro da parte superior   da catedral. Os petistas até se deitaram no passeio em busca de um melhor ângulo de observação.  Dom Mário praticamente fechava a catedral, depois da missa. Saía sozinho e se dirigia para a Mitra Diocesana. 

E a missa finalmente acabou. O adro rapidamente se esvaziou. O grupo de “criminosos” se posicionou ameaçadoramente. Estavam prontos para o bote fatal.  O motorista permaneceu na direção do veículo e deu a partida na ignição. Esperaram por cerca de uma hora. E nada de dom Mário dar as caras. Subitamente, a porta da igreja foi trancada por dentro, com um estrondo. As luzes finalmente se apagaram e o clérigo jamais reapareceu do   lado de fora. Misteriosamente, os “companheiros” do paredão também saíram de cena. O “bando de neomalfeitores” esperou até o dia clarear. Em vão.  

E, assim, um autêntico milagre ou informação anônima impediu o cinematográfico sequestro do bispo da Diocese de Itabira e Coronel Fabriciano. Resultado das eleições: Li (PDT) derrotou Jackson Tavares (PT) por uma diferença de apenas 193 votos.

PS1: Os “sequestradores” não tinham antecedentes criminais e seguiram uma trajetória correta na vida. Um deles morreu, há poucos anos, num acidente automobilístico, nas proximidades de Brasília. Outro, atualmente, é conceituado advogado na cidade. Três   trabalham em diversas atividades, em Itabira e região. Os petistas- que informalmente faziam a segurança do bispo- são bastante conhecidos. 

 PS2: O nome do segundo bispo da Diocese de Itabira e Cel Fabriciano é Jesus Teixeira Gurgel.  Mário foi adotado, posteriormente, em homenagem ao pai, Mário Gurgel Guedes. Dom Mário Teixeira Gurgel morreu em setembro de 2006, aos 84 anos de idade.

PS3:  E por que não dar os devidos nomes aos bois? Não pergunte para mim. Alguns bois ainda estão no pasto.

Fernando Silva é jornalista e escreve sobre política em DeFato Online.

O conteúdo expresso é de total responsabilidade do colunista e não representa a opinião da DeFato.

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