O peso da Ralé no sistema político
Confira o novo texto do jornalista e colunista da DeFato Fernando Silva
Anote esse nome: Johanna (Hannah) Arendt, uma judia alemã. A conversa a seguir é sobre uma teoria desenvolvida por essa mulher notável. Ainda muito jovem, ela formou-se em filosofia pela universidade de Marburg, estado de Hesse, na Alemanha.
O antissemitismo (aversão a judeus) de Adolf Hitler provocou a sua emigração para a França, em 1933. Permaneceu oito anos no país europeu. Em 1941, Paris foi invadida pelo exército nazista e Arendt foi presa pelos alemães. Na sequência, conseguiu escapar da prisão e fugiu para os Estados Unidos.
Na América, viveu durante muito tempo como apátrida (sem uma nacionalidade definida). Apenas duas décadas depois, conquistou a cidadania ianque. Em solo americano, Arendt se destacou como jornalista, professora, escritora e teórica do pensamento político (como gostava de ser chamada). Não se considerava filósofa. Em uma entrevista- nos anos 1960- Hannah se definiu cientista política.
Alcançou destaque mundial na cobertura do julgamento de Adolf Eichmann, em Jerusalém, em 1961. O nazista Eichmann vivia clandestinamente na Argentina, desde 1950, até ser capturado pelo Mossad (o serviço secreto de Israel). Foi condenado à morte. A extensa reportagem sobre o evento (o julgamento de Eichmann) originou o livro “Eichmann em Jerusalém- Um Relato Sobre a Banalidade do Mal”, um trabalho primoroso.
Hannah produziu, também, importantes publicações sobre o autoritarismo. A sua mais robusta produção, nesse contexto, é o livro “Origens do Totalitarismo”. Por sinal, esse tema nunca foi tão atual. Recomendo a sua leitura, até mesmo para você não morrer pagão.
“Ralé” é um dos mais célebres conceitos de Hannah Arendt. E, note bem: o termo (Ralé) não é uma referência aos cidadãos socioeconomicamente excluídos, mas aqui se fala do idiota. A palavra Ralé apresenta uma conotação de alienação (ou idiotice). O vocábulo idiota tem origem grega (idion) e designava aqueles que não participavam dos assuntos da Ágora- a praça onde se debatiam os problemas da coletividade (as assembleias do povo), em Esparta. Nos dias de hoje, essas pessoas (os idiotas) autointitulam-se apolíticos. “Eu detesto a política”, vangloria-se sempre um idiota.
A Ralé é constituída por indivíduos sem o menor interesse por assuntos comunitários. Esse tipo não se sente representado em nenhuma esfera de poder. Abomina a academia e se mantém à margem da coisa pública. Não consegue uma saudável convivência social. Aprecia o confronto (verbal ou físico). Passa o tempo todo em completa beligerância com o próximo e as instituições. E mais, mas principalmente: é racista, xenófobo, misógino e homofóbico. Ainda é pouco. Vasculhe o dicionário e inclua outras formas de fobias nessa lista.
Esses habitantes do armário ideológico são excessivamente arrogantes e violentos. Não toleram a divergência e resvalam para as vias de fato com relativa facilidade. Mas, que fique claro: a Ralé não pode ser confundida com involuntária exclusão social. Mesmo porque, ninguém é pobre por simples opção pessoal. Noves fora São Francisco de Assis, claro.
A Ralé é formada pela argamassa disforme dos vários segmentos sociais. Pessoas de todos os matizes ocupam esse arcabouço: milionários, intelectuais, pobretões, religiosos de todas as orientações, ateus, crentes, juízes, traficantes, simples larápios, profissionais liberais e um grande número de políticos. E só pra não dizer que não falei das flores: a Ralé está repleta de jornalistas. Na Ralé, portanto, há exemplares de todas as classes.
Normalmente, o “ralelista” se esconde num simbólico guarda-roupa (ou armário). Os seus desvios morais e éticos nãos se manifestam ostensivamente em tempos normais. A cabeça só é colocada para fora do invólucro num raro momento de oportunismo histórico: quando um membro da sua estirpe desembarca no poder. Aí, esse rejeito do espécime humana se sente à vontade para exteriorizar os seus preconceitos, recalques, taras e idiossincrasias.
A vitrine global exibe grandes casos de hegemonia da Ralé, em épocas distintas. A Ralé da Inglaterra- por exemplo- foi a grande responsável pelo êxito do imperialismo britânico na periferia do planeta, a partir do século XIX. O expansionismo na África, índia e Egito foi estabelecido por destacados burocratas da escória da Grã-Bretanha (Inglaterra, Escócia e País de Gales).
O mais cintilante expoente da Ralé, em todos os tempos, tem nome e sobrenome marcantes: Adolf Hitler, um medíocre pintor austríaco. O ditador germânico não produziu sequer uma obra de arte de relevo, mas tingiu a paisagem da geopolítica com forte tonalidade de vermelho sangue.
O mundo é assim. De vez em quando, a Ralé escapole da sua toca (ou armário ideológico) para interferir negativamente no transcurso da história. Nada é tão ruim que não possa piorar um pouco mais. Basta um dedo da Ralé.
PS: Hannah Arendt morreu em 4 de dezembro de 1975, aos 69 anos, em Upper West, estado de Nova Iorque, EUA.
Fernando Silva é jornalista e escreve sobre política em DeFato Online.
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