Outras Semanas Santas
Leia o novo texto do jornalista e colunista da DeFato, Fernando Silva
Passei a minha infância e adolescência sob rígida influência da religião Católica. Recordo com um pouco de nostalgia das grandes celebrações litúrgicas no interior das igrejas setecentistas de Ouro Preto. Havia pompa e muito luxo nas cerimônias religiosas. Ainda hoje o forte cheiro de incenso persegue-me. Parece que o sacro produto ficou impregnado em minha pele.
Fui testemunha de um tempo mágico e místico. Vi o sacerdote, com paramentos crivados de ouro e diamante, pronunciar frases ininteligíveis em latim. O coral também entoava seu cântico no idioma morto. O repertório de Lobo de Mesquita ecoava por todo o interior da igreja de Nossa Senhora do Pilar, a joia mais cara do barroco mineiro. O padre permanecia de costas para a nave durante todo o ofício da missa. Não ocorria a mínima interação com o público.
Os fiéis eram os componentes submissos de toda essa trama. Ninguém entendia nada que o celebrante dizia. Apenas os coroinhas pronunciavam algumas frases mecanicamente. Era o real triunfo da “decoreba”. A síndrome do papagaio. E o reverendo, abrindo os braços, exclamava: “dominus Vobiscum”. A resposta dos jovens auxiliares da celebração era imediata, na ponta da língua: “et cum spirito tuo”. As campainhas, agitadas freneticamente, davam um tom de alerta a esse momento de fé e incompreensão. Aprendi, com isso, que para crer não era necessário compreender. Bastava se encantar com o ritual.
O sermão era o único momento de supremacia da língua portuguesa. Eu ficava literalmente apavorado quando padre Simões falava coisas terríveis a respeito do apocalipse. Aquela voz – firme e grave trovejava ameaçadoramente pelos quatro cantos da matriz da padroeira da antiga Vila Rica. Aquela história de trombetas tocando e estrelas despencando do céu roubava literalmente o meu sono de criança. Imaginava que a qualquer momento começaria o juízo final. Contabilizava, então, os meus pecados para ver se tinha alguma chance de escapar do imenso fogaréu do inferno.
As procissões eram espetáculos inigualáveis. Os velhos católicos ouro-pretanos se esmeravam na preparação desses eventos. A procissão do enterro, na Sexta-Feira da Paixão, começava por volta da meia noite, logo após a encenação do drama do Gólgota. O cortejo percorria as principais ruas do centro da monumental cidade. Era tudo muito triste, doloroso e até desesperador. Prevalecia um silêncio quase profundo.
Apenas ouviam-se o som das matracas e as batidas cadenciadas das lanças dos guardas romanos nos paralelepípedos das ladeiras íngremes. Homens compenetrados conduziam um esquife com a horrenda imagem do Senhor morto. As figuras barrocas são apavorantes. A maratona só terminava por volta das quatro horas, bem no início da manhã de Sábado de Aleluia. Era tudo muito cansativo e extenuante. No final de tudo, nos sentíamos mais mortos que o próprio Cristo.
Mas os ponteiros giraram. A fila andou. A minha admiração por tudo isso se perdeu naquela inevitável bruma do tempo. Hoje já nem sei qual é a minha crença. Daquela época ficou em minha mente uma reminiscência que gosto de cultivar: a admiração profunda, quase idolatria, por São Francisco de Assis. Reverencio Francesco di Pietro Bernadone nos gestos mais simples do meu cotidiano. Há quatro anos, por exemplo, ganhei um filhote de cachorro. O pequeno animal recebeu o nome Chiquinho. Essa respeitosa atitude foi uma homenagem ao santo que adotou a natureza como irmã. E só.
Fernando Silva é jornalista e escreve sobre política em DeFato Online.
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