Por que a morte de quase 600 mil pessoas não provoca comoção coletiva?
A pandemia do coronavírus é tema do novo texto do colunista Fernando Silva
No mês de abril do ano passado, o Brasil registrou 1000 mortes por Covid- 19. O inesperado evento provocou um vale de lágrimas, principalmente na mídia. A Globo tentou inserir o significado desses primeiros milhares de óbitos na realidade do cotidiano. “Pensem na queda de dez aviões da ponte aérea (Rio de Janeiro/São Paulo), ao mesmo tempo”, exemplificou William Booner.
Na mesma ocasião, o biólogo Atila Lamarino fez uma previsão sombria: “até o final do ano, cem mil brasileiros perderão a vida”. O pesquisador levou pancadas de todos os lados. “Mentiroso, chutador, irresponsável e comunista”. Esses foram alguns dos sonoros apelidos recebidos pelo doutor. No final das contas, Atila errou por ampla margem. Foi pior. Dezembro chegou em companhia de 200 mil cadáveres. Uma marca desesperadora. O equívoco de Lamarino foi simplesmente de 100%. Melhor houvesse acertado.
O balanço final de 2020, portanto, foi uma lástima. E- desde então- o novo coronavírus faz uma viagem avassaladora pelo território brasileiro. O convite para o turismo macabro partiu do governador de Minas Gerais. Morreram 10 mil brasileiros. Os bares continuaram lotados. O número de óbitos subiu para 50 mil. E, ainda assim, as homéricas baladas não foram descartadas. A pátria bananeira bateu a marca de 400 mil óbitos. E segue o baile.
O empilhamento de cadáveres agora atingiu a casa de 600 mil. E nada mudou no comportamento da maioria da população. A rotina permanece como antes era. As pessoas não moveram uma palha. É uma atitude surrealista. A morte virou uma experiência absolutamente banal. Uma coisa é certa. Esse “extermínio” excessivo não provoca concussão coletiva. Apenas alguns milhões de pessoas derramam cachoeiras de lágrimas (O Brasil conta com 210 milhões de habitantes). Esse lamento é exclusivo de filhos, irmãos, pais e avós dos 600 mil mortos.
E qual o motivo para tamanha indiferença do restante da população? Seria um megaegoísmo? Noves fora o Messias et caterva, claro que não. A resposta parece simples: a mente humana tem muita dificuldade em digerir cifras tão gigantescas. Essa é uma teoria da linguística. De nada adianta a mídia apresentar exemplos comparativos para explicitar o tamanho da tragédia. Pouco importa se o número de mortos for o mesmo da queda simultânea de milhares de aeronaves. Tente imaginar a quantidade de vítimas da demolição de dez edifícios da estatura das Torres Gêmeas de Nova Iorque. Tanto faz. O acúmulo de corpos não fica visível. O oceano de cadáveres passa muito distante do imaginário humano.
Mas note-se. Haveria uma forma dessa multidão de defuntos ser assimilada pelo cérebro: a exibição da imagem espacial de 600 mil corpos esparramados numa imensa área. Essa hipótese, porém, não passa do delírio de uma noite de verão. Afinal, fictícia paisagem tétrica não casa com realidade pragmática. Para dificultar ainda mais o estímulo à sensibilidade, essas seis centenas de milhares de óbitos aconteceram em conta- gotas.
O último capítulo dessa história toda é muito lamentável. Apenas familiares das vítimas conseguem sentir sinceramente a perda do ente querido, até mesmo pela proximidade física. A Globo até pode fazer uso das mais sofisticadas técnicas para efeitos especiais, mas nem dois milhões de mortos causarão clamor universal na plateia tupiniquim. Três toques na madeira. Esse montante jamais será alcançado. Não nessa pandemia. Numa outra catástrofe sanitária-num futuro nem tão distante- talvez.
PS: para o grosso da população, 1000 ou 600 mil mortos é a mesma coisa. Esses números não passam de frios dados estatísticos. E aqui pintou o complexo de São Tomé: é preciso ver para crer. Cadê os corpos? E ponto final.
Fernando Silva é jornalista e escreve sobre política em DeFato Online.
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