Série “Kafka” recupera o humor na criação do autor de “A Metamorfose”
Os seis episódios narram a amizade entre Kafka e Max Brod, escritor a quem pediu que seus manuscritos fossem queimados após sua morte
Franz Kafka (1883-1924) pode ser associado a um mundo denso. Podemos observá-lo como um escritor que narra a eterna burocracia do sistema capitalista e jurídico, o trabalho repetitivo, a tirania familiar, a mecanização dos tempos modernos e uma certa melancolia desesperançada. Mas a obra do autor também pode ser lida da forma que ele gostaria: como uma grande piada de gosto duvidoso.
A abordagem bem-humorada foi a escolhida para “Kafka”, série em cartaz no canal Arte1. Os seis episódios narram a amizade entre Kafka e Max Brod, escritor a quem pediu que seus manuscritos fossem queimados após sua morte. O amigo ignorou a ordem e o restante, como dizem, é história.
Kafka morreu há um século, aos 40 anos, em um hospital de Viena, vítima de tuberculose. Era um advogado com noções de filosofia, devoto de exercícios físicos e que mastigava dezenas de vezes antes de engolir a comida por supostas indicações médicas. Foi ainda um mulherengo, que batia ponto em bordéis e consumia material pornográfico, o que o fez ser cancelado na internet recentemente.
Era também um homem que se divertia com as narrativas absurdas de suas histórias e com a sonoridade das palavras usadas para criá-las.
Esperança
No primeiro episódio, por exemplo, ele e Brod observam cachorros abandonados, artistas de rua e garotas de programa de Praga. Kafka, então, com um leve sorriso, diz ao amigo: “Há esperança, uma quantidade infinita de esperança, mas não para nós”.
A fala consta na biografia do escritor escrita por Brod em 1960. Embora pudesse soar como uma frase bonita entre amigos metidos a artistas, o comentário era, na verdade, um diagnóstico.
Na série, às vésperas da Segunda Guerra, em 1939, Brod também é retratado fugindo das forças nazistas com os manuscritos do amigo, à época morto havia mais de 14 anos.
A guerra ao redor, na verdade, era uma consolidação da visão de Kafka, que tinha sido aprimorada na Primeira Guerra: uma sociedade que tentava impor o controle autoritário à natureza indomável e com tendências decadentes do ser humano. Kafka via nisso um produto tragicômico, o que o impelia a escrever tal qual um comediante. “A Alemanha declarou guerra à Rússia. Aulas de natação à tarde”, anotou em seu diário, escrito em 1914.
Essas sensações o levaram à criação de obras como “A Metamorfose”, “O Castelo” e “O Processo”, com indivíduos que lidam com acontecimentos maiores do que podem controlar, até serem reduzidos a um inseto, a uma consoante ou a um réu que nem sabe que crime teria cometido.
A direção de Kafka, assinada por David Schalko, com roteiro de Daniel Kehlmann, distribui o peso da tragédia e do humor, assim como nos romances do autor — mas não faz dele apenas mais um dos seus personagens.