Cartolouco e a banalização do futebol

Entrada repentina de sósias, jornalistas e influencers no esporte é um desrespeito a quem dedica uma vida a ele

Cartolouco e a banalização do futebol
Foto: Resende/Divulgação

Lucas é um garoto itabirano pobre, de 16 anos, que sonha em ser jogador de futebol. Mesmo com pouca idade, cumpre uma rotina de gente grande. Acorda cedo, toma um café reforçado (quando consegue), e com a ajuda dos pais e outros familiares viaja à capital Belo Horizonte, sede do Mirante Esporte Clube, onde atua.

A luta até chegar ao CT do clube e os sacrifícios feitos no meio do caminho possuem uma razão: com um talento natural, Lucas é a esperança de uma vida digna para sua família. Todos apostam em seu sucesso como jogador de futebol para saírem da pobreza e alçarem voos maiores.

Mas o caminho não é fácil. Com pouco dinheiro, Lucas não tem, nem mesmo, a garantia de tomar um café da manhã todos os dias. A maioria das suas refeições depende do clube. O dinheiro para as viagens também é escasso. A sala de aula se tornou um ambiente desconhecido para o jovem atleta, que se viu obrigado a abandonar os estudos para correr atrás da bola.

De repente, Lucas e o restante dos seus colegas de elenco se deparam com uma novidade. Um famoso influencer resolve brincar de jogar bola e passa a integrar aquele grupo. O novo boleiro da turma tem tratamento diferenciado, as câmeras o perseguem, e, mesmo recém-chegado, ele logo conquista espaço entre os titulares.

O tal influencer argumenta que a iniciativa tem por objetivo alertar o meio do futebol sobre os problemas encarados pelo Mirante. Mas não conta para seus novos “parças” que a brincadeira tem um imenso potencial de engajamento nas redes sociais. Afinal, qual fã de futebol não tem curiosidade de conhecer o dia a dia de um clube?

A história contada acima é fictícia, como você deve ter imaginado. O Mirante Esporte Clube não existe, assim como o Lucas, embora haja milhares dele espalhados pelo país. Mas meu ponto neste texto é alertar sobre um fenômeno que tem acontecido nos últimos meses dentro do futebol brasileiro.

No início de 2020, Fred, participante do canal Desimpedidos, protagonizou uma série na qual disputou um torneio completo pelo Magnus, um dos principais clubes de futsal do país. Muita gente (inclusive eu) acompanhou a saga, se sentiu tocado pela realização do sonho de infância do Fred e a ação foi um sucesso.

Porém, a criativa ideia do Desimpedidos encorajou outras do tipo. A mais recente delas está ocorrendo neste momento. Lucas Strabko, o Cartolouco, assinou um contrato profissional com o Resende, clube da primeira divisão do Campeonato Carioca.

Jornalista e ex-participante do reality “A Fazenda”, o rapaz sequer se destacava em competições escolares ou da imprensa, como mostrou uma reportagem do UOL. Ainda assim, cavou uma vaga no tradicional time do Rio.

Cartolouco garante que é tratado como qualquer outro jogador e que repassará seu salário a instituições de caridade. Além disso, diz que sua presença chamará a atenção para problemas estruturais do Resende.

Talvez não nos lembremos, mas para isso existe a imprensa. E caso ela não esteja cumprindo seu papel, que seja cobrada. Outro argumento é de que os clubes desejam aumentar o engajamento em suas redes sociais.

Ora, o Íbis, outrora considerado o pior time do mundo, continua sendo um exemplo de sucesso na internet a partir de outras ideias. Com muita ironia, provocações e brincadeiras envolvendo seus próprios ativos, o clube pernambucano atingiu níveis de engajamento maiores que o de várias camisas importantes do país.

Em março, também foi revelado que “Gabigordo”, o mais conhecido sósia do atacante do Flamengo, Gabigol, estaria negociando com dois clubes do futebol carioca. A ideia teria surgido do próprio “atleta”, junto ao seu agente.

“Virar” jogador de futebol sem encarar tudo o que a imensa maioria dos atletas profissionais encararam é um menosprezo à atividade, e passa a mensagem de que qualquer um pode exercer aquela função quando bem entender. Bastam alguns contatos.

A série do Desimpedidos foi uma ótima sacada e tinha um contexto muito bem definido: realizar o sonho do mais conhecido integrante do canal. O que contou, inclusive, com a anuência do Magnus.

Mas daí abrir a porteira para que qualquer um que queira participar da brincadeira faça a mesma coisa é outra história. Significa menosprezar o tamanho do esporte, a trajetória de cada um que já está ali dentro, e o mais importante: tirar o espaço de outros Lucas.

Victor Eduardo é jornalista e escreve sobre esportes em DeFato Online.

O conteúdo expresso é de total responsabilidade do colunista e não representa a opinião da DeFato.

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