Eu vi Drummond!!!

Eu nem imaginava quem era tão ilustre personagem. Alguns anos mais tarde — já na adolescência — apresentaram-me a obra literária do Poeta Maior, Drummond

Eu vi Drummond!!!
Foto: Divulgação
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A aparição aconteceu na encantadora década de 1970, em Ouro Preto. Eu era “criança pequena” na ocasião. Deveria ter de 10 a 11 anos de idade. A minha seletiva memória, porém, lentamente vai se perdendo na inevitável bruma do tempo. Uma circunstância é real. A temperatura estava muito baixa, naquela manhã de um dia qualquer, em pleno inverno. Era mês de julho? Não tenho tanta certeza. Talvez junho. Apostaria na primeira hipótese. Até mesmo pela intensa “fauna humana” em movimentação nas ladeiras monumentais.

O Festival de Inverno atraía uma exótica multidão. Alguns eventos do passado periodicamente revisitam meu imaginário. Por motivos óbvios. E como essa “historinha” drummondiana começou? Eu morava no bairro Antônio Dias. A minha família só fazia compras no outro lado da cidade, bem longe lá de casa. Há razões que a própria razão desconhece. Parêntese. A mítica Praça Tiradentes é linha divisória entre os gigantescos bairros Antônio Dias e Pilar (ou Fundo de Ouro Preto). Dentro desses dois espaços urbanos existem dezenas de outros pequenos bairros e algumas vilas.

De repente, mãe chamou-me e ordenou:

– Menino, vá até o Armazém do Toffolo (nome de tradicional família ouro-pretana) e traga três pacotinhos de anil e uma barra de sabão.

Obedeci, embora trêmulo de frio. Fui em mangas de camisa. Quanta imprevidência! Uma densa cerração subjugava os casarões coloniais. Atravessei meio mundo para cumprir a quixotesca missão.

O estabelecimento comercial ficava na romântica rua São José, bem ao lado do conjunto “Ponte/Casa dos Contos” — local onde o poeta e inconfidente Cláudio Manoel da Costa se enforcou (ou foi enforcado).

Estava gelado de doer. Passei pela Ponte rapidamente. De relance, vi algumas pessoas conversando com um moço alto, magro e calvo, um pouco encurvado. Tinha rosto alongado e fino. Essa silhueta sem bigode se escondia atrás de intrusos óculos. Uma blusa de lã vinho arrematava o conjunto da obra. O sujeito encontrava-se em companhia de duas mulheres. Uma cena aparentemente banal. Não dei muita atenção.

Retornei com as encomendas maternas num embornal de papel. Na volta, notei pequena multidão ao lado da misteriosa figura. Essa aglomeração aguçou a minha curiosidade. Um pouco mais à frente, nas proximidades do Cine Vila Rica, dei de cara com o professor Adhalmir dos Santos Maia — amigo de pai e talentoso conhecedor dos segredos da “última flor do Lácio, inculta e bela”. O mestre brincou comigo:

– Coloque um agasalho, Agostinho (ele tratava-me pelo nome do meu pai). Você vai pegar um resfriado danado, daqui a pouco.

Aproveitei e sapequei a pergunta que insistia não calar:

– Professor, quem é a aquele homem com aquela turma toda, lá na Ponte dos Contos?

A resposta veio em forma de “passada de sabão”:

– Que pergunta é essa, Agostinho? Crie vergonha na cara! Vá estudar. Aquele é o poeta itabirano Carlos Drummond de Andrade.

A minha réplica foi catastrófica:

– Uai, professor! Eu não sabia que Itabirito é terra de um poeta famoso.

O comentário bizarro — tipo a emenda saiu pior que o soneto — tinha razão de ser. Itabirito fica a 45 quilômetros de Ouro Preto. Bem pertinho. E o povo mais simples da antiga Vila Rica — principalmente da zona rural — tratava itabirito carinhosamente por Itabira. Ir à “falsa Itabira” era uma ação muito comum no cotidiano dessa gente.

Então, eu vi Drummond!!!

E, naquela ocasião, esse acontecimento teve ínfima consequência. Não mudou nada na minha vida de moleque barroco. Eu nem imaginava quem era tão ilustre personagem. Alguns anos mais tarde — já na adolescência — apresentaram-me a obra literária do Poeta Maior. Conheci muito de sua fascinante produção modernista, principalmente nos trabalhos escolares do curso ginasial, no Colégio Alfredo Baeta. E só então percebi a grandiosidade da visão perdida. Mas o mundo deu tantas voltas e hoje estou aqui.

PS. 1: A seguinte constelação também já vi brilhar nas ruas de Ouro Preto: Vinícius de Moraes, Marlon Brando, Manuel Bandeira, Sammy Davis Jr, Chico Buarque de Holanda, Jô Soares, Alceu Valença, Ferreira Gullar, Juscelino Kubistchek, Maria Bethânia, Ziraldo, Elis Regina e outros monstros sagrados. O cantor e compositor João Bosco — parceiro musical de Aldir Blanc — estudava engenharia na tradicional Escola de Minas da cidade.

PS. 2: E nunca mais tive notícias da presença de Drummond, em Ouro Preto. Já Vinicius de Moraes sempre era visto nas ruas e botecos da cidade.

Fernando Silva é jornalista e escreve sobre política em DeFato Online.

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