Anna Karenina, Capitu ou Madame Bovary: quem traiu com mais elegância?

Dessa vez, o jornalista Fernando Silva se inspirou na literatura para escrever a crônica dessa semana

Anna Karenina, Capitu ou Madame Bovary: quem traiu com mais elegância?
Foto: Reprodução
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Madame Bovary (Emma Bovary) é uma obra do francês Gustave Flaubert. O russo Leon Tolstoi (Liev Tolstoi) escreveu o romance Anna Karenina. Capitu é uma criação do nacionalíssimo Joaquim Maria Machado de Assis. Os três autores são importantes nomes da escola literária “Realismo”.

O brasileiro viveu duas fases artísticas. Na primeira, Machado de Assis teve influência do romantismo. Na segunda, o seu trabalho- com uma produção muito mais extensa- é de cunho realista.

O realismo retrata a vida sem alegorias. É um contraponto à “melação” romancista. Ali, a trama é desenvolvida de forma clara, dura e até insensível. A paisagem é bastante mundana (ou mundo cão). Às vezes, é necessário estômago de aço para digerir os folhetins realistas.

Os personagens nada têm de ortodoxos. Em muitas oportunidades, até na maioria das vezes, são extremamente maus- caracteres. Enfim, são pessoas comuns (como se diz, de carne e osso) com qualidades, defeitos e contradições, características comuns do espécime hegemônico do planeta. Esses fatores, portanto, são tipicamente humanos.

O realismo apareceu na França em meados do século XIX e recebeu uma acentuada influência do positivismo de Auguste Comte. A ocasião praticamente coincide com o florescimento da burguesia e consolidação da Revolução Industrial. O Realismo, portanto, desponta no início do início do capitalismo.

O adultério, um tema recorrente nesse contexto, inspirou vários escritores desse gênero literário. As mulheres tratadas nesse ensaio têm comportamentos psíquicos quase idênticos: Anna Karenina traiu claramente, Madame Bovary traiu descaradamente e Capitu traiu, se traiu, dissimuladamente.

Gustave Flaubert lançou Madame Bovary, em 1857. Foi um escândalo. O escritor teve inclusive de encarar a Justiça. Nos tribunais, Flaubert se defendeu de forma inusitada por meio de uma simples frase: “Emma Bovary sou eu”. Foi o bastante para conseguir a sua absolvição.

Mas a personagem Emma era uma cobra. A comparação chega ser dura. É uma ofensa. Para o réptil, naturalmente. Trata-se de uma “heroína” com caráter próximo de zero. O marido, Charles Bovary, era um médico esforçado, mas com escasso talento. Foi um sonhador. Planejava fazer uma grande descoberta científica. O dr trabalhava pra burro, principalmente para saciar os caprichos da esposa.

A mulher, porém, tinha um apetite desenfreado. Não conseguia viver sem amantes e dinheiro. A madame era contumaz frequentadora de agiotas. Essa conjugação de muito risco (infidelidade e usura) provocou a bancarrota material e moral da família Bovary (Emma, Charles e a pequena Berta). Emma não suporta a pressão dos agiotas e suicida-se. Charles só descobre o festival de traições depois da morte da mulher. Decepcionado e atolado em dívidas de todos os tipos, com a alma em frangalhos, dá o último suspiro na solidão de um banco, no jardim de sua casa, já em ruínas.

Anna Karenina não é a obra- prima de Leon Tolstoi. Antes, ele produziu o sublime “Guerra e Paz” que, para muitos, é a maior criação da literatura universal. Eu dividiria esse mérito- em condições de igualdade- com outros dois fora de série: “Os Miseráveis” de Victor Hugo e “Crime e Castigo” de Fiódor Dostoievsky.

Anna Karenina não tinha a vulgaridade de Emma Bovary. Pelo contrário. A russa era muito bonita, elegante e de elevado nível intelectual. Perambulava com desenvoltura pelas altas rodas de Moscou e São Petersburgo em companhia de seu marido, o bem-sucedido burocrata Alieksiei Karênin.

As primeiras linhas do livro de Tolstoi são o prenúncio do que viria adiante: “todas as famílias felizes são parecidas entre si. As infelizes são infelizes cada uma à sua maneira”.

Com efeito, o drama se desenvolve em torno de três núcleos familiares (três casais). A felicidade aparente de Anna e seu marido foi interrompida com o aparecimento do conde Vronski, um belo e jovem oficial da armada do czar. Uma paixão tórrida arrebatou Karenina e o militar. Consequência desse tremor do coração: Anna deixou o marido e um filho, ainda criança, para viver com o oficial.

O troca-troca amoroso provocou um escarcéu inimaginável na conservadora Rússia czarista. A bela mulher pagou muito caro pela ousadia. De cara, sofreu uma terrível discriminação. Passou a viver como uma leprosa social. Toda a sociedade moscovita fugia dela. Por outro lado, o temor de perder o charmoso amante fez de Anna uma pessoa amarga, apreensiva e emocionalmente instável.

A sua existência se transformou numa infernal tortura psicológica: “cometi o pecado de amar desesperadamente”, resumia assim o seu drama. No auge da beligerância espiritual, cometeu o ato extremo: jogou-se sob as rodas de uma locomotiva em movimento.

Em Dom Casmurro, Machado de Assis faz uso de um estilo bastante próprio: o narrador é o protagonista da história. Então Bento Santiago (Dom Casmurro), o popular Bentinho, confessa os seus dilemas diretamente para os leitores. A dialogia, portanto, é a marca registrada dessa obra. Na avaliação de vários críticos, Dom Casmurro é a grande realização machadiana.

Capitolina Santiago (o bruxo de Cosme Velho adorava nomes exóticos) era uma bela morena adolescente. Chamava a atenção os seus lindos “olhos de cigana oblíqua e dissimulada”. As desconfianças do inseguro Bentinho ganhavam apoio da sensualidade e forte personalidade de Capitu. Esse contraste é uma das causas dos devaneios do suposto marido traído. O adultério, no entanto, nunca foi claramente exposto. Machado de Assis deixa o julgamento final nas mãos dos leitores.

E repito aqui, agora, a pergunta do título: entre Anna Karenina, Capitu e Madame Bovary, quem traiu com mais elegância? Tenho uma opinião minimamente formada.

Emma Bovary era vulgar, escrachada, irresponsável e vil. Seria uma “porra- louca” nos dias de hoje.

Anna Karenina era muito graciosa e carismática. Mas sofreu demais. Num caso de traição conjugal, a tendência de qualquer cultura é tomar partido da vítima do adultério, principalmente quando a mulher for a vilã da história. Anna Karenina, porém, subverteu essa ordem mais ou menos natural da hipócrita e machista sociedade global. Assim, um batalhão de leitores se compadeceu da tragédia da suave mulher moscovita.

Quanto a Capitu, não sei. Não tenho tanta certeza. A minha opinião é muito dúbia a respeito da senhora “dos olhos de ressaca”. A minha sensibilidade tende indicar que Bentinho jamais foi traído.

Fernando Silva é jornalista e escreve sobre política em DeFato Online.

O conteúdo expresso é de total responsabilidade do colunista e não representa a opinião da DeFato.

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