Rose Félix leva o debate sobre a desigualdade de gênero e raça para dentro da Câmara de Vereadores

Em entrevista, vereadora fala da agenda racial e de representatividade feminina no Legislativo itabirano, onde é a única mulher entre os 17 parlamentares

Rose Félix leva o debate sobre a desigualdade de gênero e raça para dentro da Câmara de Vereadores
Foto: Acom/Câmara de Vereadores
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*Por Fernando Silva

Depois de uma legislatura sem contar com a presença de mulheres, a Câmara de Itabira terá a participação de uma vereadora, nos próximos quatro anos. Nas últimas eleições, Rosilene Félix Guimarães (MDB), 43 anos, se elegeu com 1.318 votos. A popular Rose Félix é advogada. Durante dez anos, foi coordenadora do Departamento Jurídico do Sindicato Metabase. Também é empresária da área de comércio (proprietária de uma loja de acessórios femininos). A evangélica Rose tem um sonho: ser referência para as mulheres, principalmente negras. É dona de um temperamento forte, mas faz uma ressalva: “Não sou meiga, mas sou doce”. Na entrevista a seguir, a nova legisladora fala sobre os bastidores de sua campanha, analisa a desigualdade (de gênero e raça) e revela o perfil de seu eleitorado.

 

DeFato: A eleição para vereador é a mais difícil. É praticamente um vestibular muito concorrido. A senhora ainda teve duas dificuldades adicionais: é mulher e negra. Além disso, o fator pandemia complicou ainda mais a batalha pela conquista dos votos. Como a senhora conseguiu superar esses obstáculos? Qual foi a fórmula do sucesso?

Rosilene Félix Guimarães: Eu usaria duas palavras para definir essa fórmula do sucesso: persistência e renúncia. Persistência para não desistir, apesar das dificuldades. E renúncia para abrir mão de algo prazeroso, algo importante, mas que, naquele contexto, poderia tirar o foco e atrapalhar o objetivo final, que era a conquista do mandato. Muitas mulheres relataram essa dificuldade pra mim (de ser mulher à procura do voto), pois aparecemos num ambiente masculino e recebemos cantadas, por exemplo. Lembro-me de que, durante uma carreata, alguém gritou: “Ô gostosa!”. Para a mulher, essa participação num processo eleitoral é uma atitude desafiadora. E, se a gente for olhar todos esses obstáculos, a gente para. Durante a campanha, deixamos tudo para trás: os negócios, a família e o lazer. Então, a persistência e a capacidade de renúncia são fundamentais nesse processo.

DeFato: A senhora saiu do processo com uma votação expressiva (1.318 votos). Qual é o perfil desse eleitorado, que tanto se encantou com o seu discurso?

Rose Félix: A minha candidatura nasceu na Igreja Batista Central, por inciativa de Marcelo Reis e pastor Flávio. Então, a gente construiu uma Rose, que trabalhou e fez um discurso para as mulheres evangélicas e também para mulheres de outros grupos sociais, onde já havíamos desenvolvido algum trabalho. Mas falamos ainda para a família e o pequeno empreendedor. Eu entendo que foi uma campanha com mais ênfase nas mulheres. Eu acho que outras vereadoras, historicamente eleitas em Itabira, não carregaram tanto a bandeira das mulheres. Então, a minha campanha foi feminina, embora algumas das minhas propostas não fossem exclusivamente para mulheres. Eu acho que o meu eleitorado é basicamente formado por mulheres evangélicas, mulheres empreendedoras, trabalhadoras do comércio, professoras e diretoras de escolas.

DeFato: A sua presença na Câmara de Vereadores traz para o debate um assunto bastante impactante na sociedade moderna: a igualdade de gênero e raça. No primeiro aspecto, temos dados estatísticos muito relevantes, em relação à mulher na sociedade global. No mundo todo, apenas 5% das mulheres ocupam cargo de chefe de estado, só 1% das mulheres são donas de grandes empreendimentos. Em compensação, 63% dos analfabetos são do sexo feminino e 81% dos refugiados são mulheres. Como a senhora analisa esse quadro bastante adverso para as mulheres, apesar dos avanços das últimas décadas?

Rose Félix: A avaliação realmente é negativa, quando olhamos friamente para esses dados estatísticos. Esses números não são nada atrativos, quando pensamos na questão da representatividade. Mas há um resultado positivo se analisarmos o contexto histórico. Houve uma época em que a mulher não tinha nenhum direito. Não podia votar, tomar decisões e nem ser dona de uma empresa. Enfim, a mulher não tinha vez e nem voz. Então, quando olhamos para a história e observamos o tanto que caminhamos, essa observação passa a ser positiva, embora eu entenda que a nossa luta ainda nem chegou à metade. Nós somos de uma geração, que enfrentou muitos desafios para colocar em prática o nosso discurso. Nós estamos conseguindo conquistas importantes, mas que são irrelevantes diante desses índices que você apresentou.

DeFato: E, para além da exclusão, há a violência contra a mulher, que tem aumentado muito, apesar de algumas conquistas, como a Lei Maria da Penha. Um exemplo marcante foi o claro abuso sexual cometido pelo deputado Fernando Cury (Cidadania), que apalpou a deputada Isa Penna (PSOL), em plena sessão da Assembleia Legislativa de São Paulo. O Conselho de Ética puniu o parlamentar com a suspensão do mandato por quatro meses, sem remuneração. Essa punição ficou de bom tamanho ou deveria ter sido mais rigorosa?

Rose Félix: O representante do poder público tem que ser avaliado sempre com uma visão mais dura, porque ele está ali representando outras pessoas, está ali para dar bons exemplos. Eu entendo que esse senhor deveria responder pelo crime de importunação. Eu entendo que esse tipo de delito, principalmente quando cometido nas casas Legislativas, deveria ter uma punição muito mais rigorosa, porque esse caso é um reflexo da nossa sociedade. Essa situação é fruto de um contexto machista, onde se imagina que a mulher existe para servir o homem, que ela deve submeter-se passivamente. São conceitos extremamente machistas, que formaram o patriarcado ao longo da nossa história. E, para quebrar isso, só com duras punições. Então, no meu ponto de vista, a punição sofrida por esse deputado foi muito leve.

DeFato: E já que tocamos nesse problema da Casa Legislativa de São Paulo, os trabalhos da Câmara de Itabira completarão dois meses. A realidade do Legislativo itabirano está de acordo com o que a senhora previu antes de se eleger ou algo está fora do seu imaginário? Noves fora a pandemia, que derrubou algumas expectativas.

Rose Félix: Eu trabalhei como assessora parlamentar, durante dois anos. Então, eu conhecia um pouco do funcionamento da Câmara. E, nesse contexto, a gente tem que lidar com dois públicos: o público externo, que é a população e o público interno, que é dividido em dois grupos: os servidores da Casa e os vereadores. Mas tudo tem atendido positivamente à minha expectativa.

DeFato: Como única vereadora, às vezes, a senhora não se sente como uma estranha no ninho?

Rose Félix: É engraçado, mas fui muito bem acolhida pelos colegas vereadores. Mas eu já tenho uma experiência de vivência em ambientes masculinos, devido ao meu exercício profissional no Sindicato Metabase. Eu admito que tenho uma personalidade muito forte, não sou uma mulher muito meiga, mas sou doce, viu? Às vezes, tá! Mas, enfim, não me sinto uma estranha no ninho. Eu quero apenas abrir espaço para outras mulheres.

 

DeFato: Mas voltando à questão racial. A sociedade brasileira é racista, e nem tão dissimuladamente. Nesse cenário, é gritante a exclusão do negro. A maioria dos negros encontra-se no limite da pobreza. Além disso, a população carcerária é formada por 63% de negros, segundo dados do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos. Isso deixa claro que o Brasil é uma terra de pretos de tão pobres, e de pobres de tão pretos. A senhora, que é uma negra com bom padrão de vida, tem curso universitário e agora inicia uma carreira na política, considera-se uma privilegiada?

Rose Félix: Esse é um problema de origem histórica. No meu ponto de vista, a gente só conseguirá mudar essa realidade, transformando as novas gerações, para que elas entendam o que uma pessoa preta sofre na pele, quando é vítima de racismo. Precisamos mudar a mentalidade dessas pessoas, que afirmam que é o próprio negro que se exclui. Esse tipo de gente que afirma com a maior naturalidade: “até que ela é uma negra bonita, né?” Isso é racismo estrutural. Mas não me sinto privilegiada, porque eu tenho uma origem humilde. Meu pai era operário da Vale e minha mãe era uma dona de casa, semianalfabeta. Minha família é muito numerosa. Tenho seis irmãos e eu sou a primeira pessoa da família, incluindo os primos, que conseguiu fazer uma faculdade. Enfrentei muitos desafios e encontrei muitas dificuldades para chegar a esse lugar. Um dos meus propósitos, nesse mandato, é servir de inspiração para outras mulheres negras.

DeFato: E em toda essa sua trajetória de vida e profissional, a senhora já vivenciou alguma experiência racista? Já sofreu alguma discriminação?

Rose Félix: Sim, já passei por essa situação muitas vezes. Certas experiências, que marcaram muito a minha vida, aconteceram na sala da OAB, no início de minha carreira de advogada. Em algumas oportunidades, me encontrava ali, esperando uma audiência, quando chegavam alguns advogados de outras cidades e me pediam para tirar uma cópia (xerox) ou fazer um serviço que era obrigação da secretária, que se encontrava na mesma sala. Com esse comportamento, eles deixavam explícito que eu, por ser negra, não poderia ser uma advogada. Hoje em dia, há muitas mulheres advogadas, mas poucas advogadas negras.

DeFato: Tenho uma pergunta bem específica para a senhora, que é evangélica. Reiteradamente, o presidente Jair Bolsonaro tem afirmado que pretende indicar uma pessoa extremamente evangélica para ministro do Supremo Tribunal Federal (STF). Até que ponto essa mistura de política com religião é benéfica para a sociedade?

Rose Félix: Eu acredito nas alianças, que são feitas com pessoas, que têm os mesmos princípios. E esses princípios não necessitam, necessariamente, estarem ligados à opção religiosa das pessoas. Eu, particularmente, tenho muitos amigos evangélicos, católicos e espíritas. Eu não acredito que alguém deva ocupar um cargo, devido exclusivamente à sua opção religiosa. Eu entendo que devam prevalecer, nesse caso, o caráter, os princípios morais e a capacidade profissional. Então, eu avaliaria (para ocupar o cargo no STF) outros valores e não necessariamente a religião.

DeFato: Itabira vive um momento muito delicado, provavelmente o mais trágico da sua história. A segunda onda da pandemia bateu avassaladora na cidade. As consequências socioeconômicas e humanitárias são dramáticas. Que avaliação a senhora faz desse panorama tão desesperador?

Rose Félix: Esse é o momento mais difícil da pandemia, porque o número de mortos está muito elevado e o número de infectados também. A ocupação de leitos entrou em colapso. Lá atrás, quando tudo começou, não estávamos preparados para a pandemia, mas vínhamos de um momento bom. Vínhamos de um momento em que as pessoas estavam saudáveis, estavam trabalhando e com uma saúde mental melhor que hoje. As empresas e o comércio tinham um funcionamento normal e não faltavam leitos nos hospitais. Hoje, no pior momento da pandemia, estamos vindo de um cenário muito ruim. As empresas e o comércio passaram por um período muito difícil, cheio de restrições. Além disso, as pessoas já se encontram emocionalmente saturadas, com isolamentos e incertezas. Será necessária muita sensatez para se passar de uma fase muito ruim, muito crítica, para uma fase melhor, sem maiores danos para a vida, para a economia e para o nosso emocional.